A revelação

Tais Civitarese Clara sentiu que aquele era o momento. Todos em família, sentados à mesa. Estavam reunidos para o jantar. Ela não aguentava mais guardar aquela verdade apenas para si mesma. Precisava fazer o que devia ser feito. Bebeu um gole d’água, limpou a garganta e disse em alto e bom som: – Eu votei no Bolsonaro. Fez-se um silêncio. Sua mãe deixou cair o … Continuar lendo A revelação

Famílias-margarina

Tais Civitarese Não existem famílias-margarina. Se vir uma, desconfie. Até porque a margarina já era. Boa mesmo é a manteiga, o requeijão ou a geléia. Há sempre um esqueleto (ou alguém) dentro do armário. Há sempre algo escondido debaixo do tapete. Durante muito tempo, assim propagandeou-se o objetivo de uma vida: formar e constituir famílias-margarina. Casa, cachorro, carro, cota do clube. Um filho e uma … Continuar lendo Famílias-margarina

Liberdade Karenina

Tais Civitarese Meu marido deixou crescer o bigode e por este motivo resolvi ler “Anna Karenina”. Já conhecia a história através do filme de Joe Wright, de 2012. A versão não é considerada uma das melhores, porém causou-me muito impacto na época, quando assisti. De todos os personagens, o mais marcante para mim foi ele mesmo, o bigodudo conde Vronsky. Sim, eis aqui o meu … Continuar lendo Liberdade Karenina

Anohni

Tais Civitarese Antony passou batom. Penteou os longos cabelos negros. Aplicou pó compacto sobre a pele clara e imaculada. Vestiu um figurino composto por uma blusa de franjas aplicadas sobre um vestido em tricô. Antony sentou ao piano. E cantou e tocou uma música extremamente bela sobre a angústia em torno da morte. A voz de Antony é uma junção entre o grave e o … Continuar lendo Anohni

Reflexões sobre a catastrofilia

Tais Civitarese É sabido que boa parte dos jornais vive de publicar más notícias. São estas as que geram mais interesse, as que chamam mais a atenção. Existem periódicos dedicados quase que exclusivamente ao relato de crimes. Vendem como água e não se pode dizer que agregam nenhum outro tipo de informação. Tive uma vizinha que adorava contar tragédias. A cada encontro, era uma pior … Continuar lendo Reflexões sobre a catastrofilia

Maternidade

Tais Civitarese Tornei-me mãe aos 31 anos. Já havia percorrido alguns caminhos. Já tinha uma profissão, vários empregos, amigos, convivência em família. Já tinha morado em dois países e já tinha, eu mesma, participado de inúmeros nascimentos. Entretanto, pouco me lembro conscientemente das coisas que vivi antes daquele dia. Parecem tratar-se de uma outra pessoa, de uma outra vida. Mesmo sem nunca ter sonhado em … Continuar lendo Maternidade

Hater

Tais Civitarese Breno não tinha nada para fazer. Como de costume, resolveu entrar na internet. Naquele domingo à tarde, ele poderia ter arrumado sua cama e seu quarto. Poderia ter lavado os copos que estavam sobre a pia. Poderia também ter aguado o vaso da jibóia, que apesar de verde, padecia seca na prateleira da sala. Porém, ele preferiu aconchegar-se no sofá e rolar o … Continuar lendo Hater

Devorador de livros

Tais Civitarese O cachorro deu para comer meus livros. Isso me trouxe um profundo desgosto. Ai de mim se abandonar um exemplar sobre o sofá. É fato que em poucos minutos, será encontrado aos pedaços na garagem, recoberto por terra, irrecuperável. Com o outro cão, eram os sapatos. Talvez isso indique algum tipo de evolução (canina ou minha?). Talvez isso simbolize algo. Descobri esse pendor … Continuar lendo Devorador de livros

Estrangeiro

Tais Civitarese De uma certa maneira, somos todos estrangeiros. Nosso país não é nosso, e sim dos que estavam aqui antes de nós. A língua que se fala aqui não fomos nós que criamos. Quando chegamos, tivemos tudo a aprender. O que acontece à nossa volta, mesmo por perto, mesmo em ambientes conhecidos, pode ser muito estranho. “Não se encaixar” é um sentimento da maioria … Continuar lendo Estrangeiro