Cheguei ao hospital para trabalhar e me dirigi à catraca. O crachá pendurado na blusa indicava “Psiquiatria da infância e da adolescência”.

Ao passar pela recepcionista, prossegui. Dei alguns passos à frente e ouvi um grito:

– Ei, moça!

      Parei.

      Ela disse:

– Deixe-me ver seu crachá.

      Mostrei.

– Está vencido. – ela falou.

– Mas preciso dele para minha identificação. – Respondi.

      Ela continuou:

– Você precisa entregá-lo. Está vencido.

– Não posso entregá-lo. Preciso dele para minha identificação diante dos alunos. O crachá novo já está sendo providenciado, é questão de tempo.

      Foi aí que ela esticou a mão e arrancou o crachá da minha blusa.

     A blusa era de tricô, e junto com o crachá, saiu também um fio. Olhei-a atônita.

      Ela arrancava de mim ali mais do que minha identidade. Arrancava o porto seguro onde me encontrei profissionalmente após a maternidade. Arrancava seis anos de estudos, dois de residência e mais tantos de pós-graduações e leituras. Arrancava a profissão que escolhi e no exercício da qual me sinto feliz. Arrancava meu orgulho, minha força, minha dignidade.

      Não foi fácil voltar. Ela não sabe disso, mas estou ali por um detalhe muito tênue, por um equilíbrio muito fino. Pelo convite de um amigo, que poderia não ter acontecido, e no qual apoiei todas as minhas forças numa esperança de recomeço.

     Estou ali por um fio. Abracei-me a esse fio para reconstruir minha história. A moça puxou meu fio. Na hora, chorei. Depois, me reergui e, de posse de um crachá válido, sigo no exercício daquilo que tanto me preenche e alegra.

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