Guilherme Scarpellini
scarpellini.gui@gmail.com

Na semana em que contávamos 10 mil mortos por “gripezinha”, Bolsonaro contaminava o Lago Paranoá com seu jet ski e Regina Duarte nos fazia engolir os versos de “Pra Frente, Brasil”, enfim, uma boa notícia: vou ser titio.

Eu já sabia desde o início da semana, quando a Alessandra, minha irmã, ligou perguntando quantos fios de cabelo brancos eu tinha na cabeça. “É o suficiente para ser um bom tio”, disse ela, concluindo pelo meu grisalho de botar inveja em William Bonner.

Mas guardamos a boa nova até o último domingo, quando foi a vez de os meus pais saberem. Os ânimos já estavam exaltados com essa saudade doída, e marcamos um Zoom para simular um almoço tradicional de Dia das Mães.

Aparecemos na tela, e ela disparou: estou grávida. Foi a primeira vez que vi o meu pai chorar. Pena que durou pouco, pois o homem sisudo levantou-se da cadeira e, desconfio, terminou de chorar no banheiro. Pouco depois ele reapareceu com a cara vermelha e um sorriso bobo de avô.

Brincamos que se for menino, se chamará Alquingel. Se menina, Cloroquina. Rimos muito, choramos mais e despedimos-nos felizes e emocionados. Até que a realidade dura do isolamento se impôs novamente.

Como almoço virtual não enche o bucho, precisei sair para conquistar a minha sustância.

Aventurar-se pelas ruas da Savassi a caminho do supermercado em domingo de quarentena é como atravessar um cenário pós-apocalíptico. Os entregadores são os únicos sinais de vida. Eles desbravam a cidade finada como motoqueiros fantasmas.

Há também os miseráveis e desamparados, que perambulam pelo deserto de prédios atrás de miragens de misericórdia.

Um deles veio até mim e descobriu que eu era gente mesmo, dessas de carne e osso e máscara. Com um receituário nas mãos, ele dizia que o seu filho precisava de leite em pó. R$40! Num país em que fazer as unhas é atividade essencial, leite em pó é tão importante quanto a cor do esmalte da Pugliesi.

Com o dinheiro minguado no bolso, ofereci o que tinha no peito: um pedaço de coração cortado.

Segui cabisbaixo até o supermercado e, de repente, na esquina com a Antônio de Albuquerque, uma boa notícia. Ou melhor, três boas novas: um violão, um trompete e uma caixinha de som.

Dois músicos na calçada davam uma canja de música boa, enquanto moradores dos prédios acompanhavam do alto de suas varandas.

Quando passei por eles, o violão chorou os acordes tristes de uma canção do Pink Floyd. Então o trompete soprou a melodia do refrão, e eu cantei em silêncio para mim mesmo: How… how I wish you were here… Eu também queria que você estivesse lá para ver.

Músicos realizam apresentação para moradores de prédios na rua Antônio de Albuquerque, na Savassi, em Belo Horizonte (Arquivo Pessoal).
Guilherme Scarpellini

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