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Do corredor avistei os dois quartos. Um deles imagino, seria o quarto da mãe-velhinha-de-noventa-anos. Do lado da cama estilo marquesa, uma caminha pobrezinha, provavelmente para a enfermeira da noite. Lustre, flores na janela, cortinas brancas de cetim, do teto até o chão; dois tapetes, um ao lado de cada cama, sobre a cômoda, também marquesa, caixinhas de remédios das mais variadas cores e tamanhos. Jarra de cristal, dois copos, com porta copos de metal, uma revista de palavras cruzadas, uma bicpreta e uma caixinha que não quis ver o que havia dentro.
Do lado direito do corredor um quarto grande, a suíte do casal, pensei com ar conservador e preconceituoso. Deve ser aqui, falei para mim mesma. Cama com dossel…há quanto tempo não via isso a não ser em filmes de época ! Quarto grande com cortinas grenás, de cetim, desde o teto caindo sobre um imenso tapete persa, quadrado, ocupando todo o piso. A cama era de ferro, porém com flores e folhas trabalhadas por sobre o gradeado. Por detrás saía um tubo que se curvava para a instalação do dossel que, preso, não me deixou sequer entrever como seria. Uma colcha belíssima, também em tons de vinho e rosa, almofadas indianas, cheias de brilho, se misturavam aos travesseiros de fronhas lisas.
Numa das laterais da cama belíssima peça em petit bronze, uma caçadora trazendo um cervo pela coleira. Um vento imaginário soprava suas roupas esvoaçantes, e um cão deitado aos seus pés compunha o belo abat-jour. Do outro lado, em tamanho menor, um pequeno lustre de cristal com pequeninas contas dependuradas, um livro de capa preta, um porta-óculos. Havia ainda uma arca que nada tinha a ver com o mobiliário, sobre ela uma sacola de viagem, aberta, uma caixa de sapatos, fechada, dois pacotes de presentes.
Ao me virar me deparo com uma cômoda. Sobre a cômoda vários porta-retratos. Imagino que seja o meu vizinho nas fotos: quando bebê, no colo da mãe, o pai bigodudo do lado; de uniforme no jardim da infância, no time da escola, recebendo diploma, vestindo casaco em paisagem nevada, uma longa viagem, talvez. Esse é o Maurinho… Porto Seguro ao fundo; São Paulo, Viaduto do Chá; Praia de Ipanema, Rio; Pelourinho em Salvador. Os dois, em pose tradicional, mãos na cintura, sem olhares de cumplicidade, sem sorrisos compartilhados, sem demonstrações explícitas de afeto, mas sempre juntos. Sobre as fotos as datas: a mais antiga de 1998 a mais recente desse ano, janeiro de 2004.
Fico olhando os dois nas fotos. Sinto-me invadida por uma certa ternura morna vendo-os ali, lado a lado. Imagino cenas de alcova nesse quarto onde estou, penso no quanto a vida é estranha e generosa ao mesmo tempo, Deixo de lado meus pensamentos antigos, cheirando a mofo. Me dou conta de que cada um é feliz à sua maneira e que bom que seja assim! Interesso-me pelo conhecer em profundidade a alma das pessoas, de todas as pessoas. Penso ainda em como eu seria feliz se pudesse entender o que vai pelos corações e mentes das pessoas a quem amo. Será possível voltar a estudar na minha idade? Levar meu trabalho até à clínica e pensar em me inscrever para um curso, talvez? Psicologia? Psicanálise
O cenário do 605 me enche de emoção. É como se eu visse em seus quartos, em seus vazios, seus silêncios todas as experiências humanas reunidas. A solidão, a tristeza, a doença, o abandono, o passado ali tão presente, mas também indícios de futuro, de re-começos, de pequenas alegrias, da vida que pulsa apesar de, e não pára. Sinto-me empurrada dali…caminho em direção à porta. Olho e não vejo ninguém nos corredores. Ainda bem. Fecho a porta, passo a chave, tranco no 605, todas as histórias que a minha mente foi capaz de criar. Volto para casa, Francisca ainda no açougue. Na tela do meu computador o trabalho que preciso entregar ainda hoje. Respiro lenta e profundamente. Sirvo-me de uma xícara de chá. A manhã está fria, venta muito. Olho para o telefone que não toca. Tomo devagar minha xícara de chá. Pensamentos me invadem, seres humanos, sentimentos comuns, pessoas, vida!
E uma compaixão imensa toma conta de mim.
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