Quem é você?

Rosangela Maluf

Aquela foto no porta retratos me olha. Um olhar intenso!

Em preto & branco como se perguntasse em quem me tornei depois de tantos anos. Olho para aquele rostinho ligeiramente sorridente. Um rostinho bonito, parecendo feliz, ar de calmaria.  Pouco questionador, na foto. Não parece querer saber muita coisa. Mas tem várias perguntas pra mim.

Com meu olhar de adulto inquieto, pergunto-me quais poderiam ser as respostas que pretendo dar.

Poderei me transportar para aqueles anos, já há tempos, vividos. Tentar reviver a alegria dos anos de minha infância. Vida privilegiada. Emoções plenas, compartilhadas em família. Brigas entre irmãos com o “ficar de bem” comemorado com abraços prolongados sob a supervisão da matriarca.

Mesa de almoço sempre cheia de assuntos. Muitos risos, muitos. Um privilégio ter tidos aqueles pais. Um prêmio. Bênçãos. 

A vida simples e adorável em uma cidade do interior. Sem barulhos. Sem carros buzinando na rua. Cerca dividindo quintais.  Vizinhos conversando enquanto a roupa era estendida nos varais. 

Horta sempre cheia de verde. Verdes que iam pra mesa, a cada dia um diferente. Sucos, de limão, de laranja, de manga, de goiaba todas as frutas retirados do pé. Quintal cheio de árvores. Pé de mamão, abacate e banana caturra, bem cheio o  fundo do quintal.. Cana de açúcar cortada e repartida pelo pai. Mais momentos de risos. E de brigas também.

Horários do dever de casa rigorosamente cumpridos. Uma mesa e cada um em seu lugar. Bolinhas de papel sendo atiradas. Apontador quebrado, quem quebrou? Caixas de lápis de cor para encantar. Desenhos sem muita forma, mas plenos de conteúdo. Álbum de figurinhas para colecionadores. Mais risos e mais brigas na hora do lanche. E depois os abraços e beijos da reconciliação.

Aqui onde me encontro agora, ainda não é noite. Uma cadeira de balanço, um livro e uma xícara de chá. Chove muito, já há três dias. E só hoje percebo aquele olhar curioso, querendo saber quem eu sou. Eu olhando pra mim!

Sou você, menina, que durante todo este tempo, passou por tanta coisa. 

Muita coisa me foi ensinada, mas o sofrer não estava entre elas. 

Precisei aprender sozinha. 

Abraçada ao travesseiro, a chorar no escuro.

 A vencer o desconforto ao perceber que nada estava bem. Tudo estava mal, pelo menos naquele momento. Mas eu nunca soube que o bem passaria e que o mal passaria também.  É preciso calma. A dor no peito, a falta de ar. O sono que não vem e o choro – como se adiantasse chorar! 

Foi lento o aprendizado, mas posso dizer que, se por um lado o sofrimento é inevitável para todos, por outro lado, saber como enfrentá-lo é um grande passo rumo à sabedoria.

Precisei menina, de muita coragem para vencer os medos. 

Pouco me falaram sobre eles. Ouvia sobre o escuro. Fantasmas. Almas penadas. Ninguém me explicou sobre os outros medos, os mais temíveis. Os nossos mais íntimos medos. Só nossos. Aqueles que nos assaltam, impedindo-nos qualquer reação. Os mais terríveis que nos deixam sem ação e inertes  permanecemos.

As inseguranças que nos afligem, independente da idade. Diante de qualquer situação ela surgm exatamente para nos mostrar que nem tudo que é traçado, planejado pode ser executado com segurança. Ninguém me contou que nem tudo que a gente planeja, acontece. Quantas vezes a gente se empenha em projetos que dão em nada? Profissionalmente ou pessoalmente. Você quer, você deseja muito, você dá o seu melhor e mesmo assim, tudo se perde por aí.

Coragem para lidar com as perdas. Assistir a partida de pessoas muito queridas sem poder fazer absolutamente nada. Um constante cair e levantar-se.

Ouço Chopin e seus noturnos que tanto bem me fazem. Penso no compositor ao escrever seus poemas musicais. Respiro fundo. Imagino-me no lugar dele. O que sentiria no momento de compor todas estas maravilhas. Algumas tão tristes que nos levam ao choro. E chorava também o compositor? Talvez.

Volto a olhar a menina no porta retratos.

Você não sabe guria, mas a vida não é fácil. 

Existe o sucesso, mas existem os fracassos também. 

Também não me disseram sobre os corações dilacerados. 

Os amores não correspondidos. 

As paixões que se apagam sem que a gente perceba. Tudo tem um fim e com o amor não é diferente. É onde cometemos os maiores enganos, os grandes erros em nome de um sentimento até hoje incompreendidos apesar de cantado em trovas e versos pelos poetas e trovadores.

Os livros falam de amor e a gente embarca neles. 

Os enamoramentos. O encantamento. A paixão que, às vezes, o acompanha. E que também pode matar, ou quase. As músicas românticas falam de amor e a gente embarca nelas. Há ainda os filmes, as peças de teatro, esculturas antigas idolatrando este sentimento. 

Pois é, você nunca poderia imaginar o que seria da sua /minha vida depois de tantos anos.

Agora sou eu quem olha pra você. 

Vejo esta carinha inocente, sorriso meio de lado, otimista em relação ao amor, à vida. Desconhecendo o mal e os males. Ah, se você pudesse me ouvir!

Tentaria fazer de você uma pessoa muito mais feliz. 

Sem apegos ou possessões que pudessem lhe trazer infelicidade. Não haveria nunca um caderno de receitas com tudo pronto para enfrentar a vida e seus mistérios. Mas eu sopraria grandes verdades em seus ouvidos. Bastaria que você soubesse escutá-las.

Me ouça: tudo segue por onde tem que seguir. 

Na vida, garota, há uma caixinha destinada a você.

 Algumas ações que você descobrirá dentro da caixinha, dependem exclusivamente de você. Faça o seu melhor, se empenhe e os resultados certamente virão. E se não vierem, aprenda desde já a trabalhar a frustração. Lembra? Nem tudo são flores e não são mesmo.

Na mesma caixa você encontrará uma listinha do que não depende de você. Aceite e entenda: o que não é possível remediar, remediado está! Não insista, respire fundo e acate, mesmo que num primeiro momento lhe cause desconforto e dor.

Fácil não é, mas existem vários caminhos. Veja só, menina, você pode se imaginar num palco. Sim, um palco onde estão representando uma peça. Peça que é exatamente o problema que você vivencia agora. Saia do palco. Entregue seu problema para quem ficou por lá, os novos personagens da sua mesma história.

Vá para a plateia. 

Escolha um lugar de onde você possa enxergar tudo. 

Use o seu poder de análise e veja o cenário. Se é uma paisagem ou uma cena corriqueira dentro da sua casa, por exemplo. Ou em outras casas. Observe a  iluminação. Veja onde há claridade e onde ainda impera a escuridão. Cuidadosamente, analise os personagens, inclusive aquele que representa você.

Sabe como se chama isto? Distanciamento. E o que ele poderá lhe trazer de bom? Isto lhe permitirá ver as coisas de longe. Uma melhor análise da situação e lembre-se de que é só um exercício. Com o tempo você estará melhor em suas próprias avaliações.

Deixando os problemas de lado, vendo o lado bom das coisas, o aspecto positivo da vida, viva! Pense no quanto tudo é passageiro. O tempo que voa, as alegrias impermanentes, as dores que vêem e logo se vão, e assim num piscar de olhos, um dia iremos todos nós rumo ao infinito.

Olhe pra cima e veja que existe um céu. 

Nele o sol, a lua, as estrelas, o arco-íris. 

Olhe para o mar. Contemple as águas, a areia, os peixes. Mergulhe de cabeça sem se importar se a água é muito fria. Navegue em ondas. Saiba resistir quando vir o indicador de perigo. Faz parte da vida navegar em águas turbulentas.

Admire o verde. Respire fundo. Caminhe entre árvores. Ouça os pássaros.
Encontre pessoas. Converse, escuta e ouça sempre que possível. Preserve os bons amigos. Celebre o viver com um bom vinho, pelo menos uma vez por semana. 

Ame alguém que lhe seja muito querido. Compartilhe ideias, sentimentos, planos e projetos futuros. Isto também faz parte. Invista e jogue para ganhar. Seja verdadeira em seu querer e em seu amar. Viva intensamente o abraço, os beijos, Viaje muito, descubra o mundo, novos lugares, novas pessoas.

Vejo de novo a foto e me dou conta de que aquela menina não vai entender.

Não posso exigir que ela me ouça, que me entenda. É muito pequenina, preocupada apenas em fazer bolas de sabão, empinar papagaios, pular maré, brincar de roda.

Termino  o chá. Fecho o livro e revejo mais uma vez a menina na foto. 

Viro o porta retratos para longe dos meus olhos. 

Enxugo uma lágrima. Respiro fundo. Preciso celebrar a vida.

Nada mais.

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