À procura de uma história de amor

Peter Rossi

Me vejo em frente à tela do computador, buscando uma inspiração. 

– Preciso de uma história de amor, preciso de uma história de amor!

As palavras não saem, entretanto. Sigo na minha narrativa de dizer que nada tenho a dizer. Incrível como esses hiatos acontecem, muito mais que a gente imagina. E a sensação é a pior possível, de absoluta inapetência.

Fixo minha mente, procuro me concentrar, mas nada acontece. Para um pouco e olho ao redor. Na mesa do restaurante, no meio de um dia de inverno, sigo à procura de uma história. Agora, nem mais faço questão que seja de amor, pode ser uma história qualquer, de uma pessoa qualquer, em qualquer lugar.

Meus olhos, como periscópio, giram ao redor do espaço. Tento me lembrar de algum texto que me emocionou, de alguma música que gosto de ouvir. Tudo isso traz inspiração, mas nada! Sigo inerte e inconformado.

De repente, do outro lado da rua, um senhor de cabelos brancos, bem magrinho, com uma blusa duas vezes maior que o seu tamanho, acena para os carros que seguem pela avenida, indicando aonde podem estacionar. O centro da cidade, o caos urbano, não oferece muitas oportunidades. Daí aparecem os “flanelinhas” a ajudar nas manobras. São pessoas discriminadas em razão da atitude de alguns que prometem tomar conta do veículo e cobram antecipadamente. Com o dinheiro na mão simplesmente somem do lugar, deixando o dono do carro à mercê de eventuais ladrões. Pessoalmente não simpatizo com eles. Ao contrário, tenho pouca paciência e, reconheço, às vezes não lhes dou a mínima atenção.

Mas meu amigo de cabelos brancos não parece agir assim. Interrompo meus pensamentos e depois de alguns passos céleres, vou ter com ele. Pergunto desde quando está ali, se vem todos os dias, se dá pra viver com o que arrecada e se as pessoas o tratam bem.

Com toda paciência do mundo ele ordena as ideias e começa a me responder, não sem antes perguntar como me chamo. Me dou conta da indelicadeza ao lhe contar meu nome.

– Pois bem, Senhor Peter, é isso mesmo? Peter? Que nome mais esquisito!

Explico que é uma homenagem ao meu avô, que veio da Inglaterra para trabalhar na mina de ouro na cidade de Nova Lima. Tenho o mesmo nome que ele tinha.

– Sou o Antônio, mas me chama de Tonho mesmo, é como todo mundo me conhece. O senhor acredita que tenho 72 anos?

– Meu amigo, em poucos dias farei 60, sendo assim, vamos dispensar o “senhor”, me chame pelo meu nome, pode ser?

– Tudo bem “seu” Peter, quer dizer … Peter. Que nome mais esquisito, disse sorrindo com uma boca de poucos dentes.

– Eu sou aposentado, mas minha dona anda de cadeira de rodas, não pode me ajudar. Eu que tenho que ajudar ela. A gente mora nos fundos do terreno do cunhado, na comunidade perto do Supermercado, o senhor conhece?

– Conheço sim Tonho, mas deixemos de lado o senhor, por favor. Já estive lá em algumas ações sociais. Hoje vejo que foram construídos alguns prédios à frente, cada um pintado de uma cor, dando leveza ao morro. Num primeiro momento achei que era apenas uma maquiagem, mas hoje percebo que tem muito a ver com humanização.

– Ficaria mais bonito mesmo se todos os barracos fossem pintados, mas tinta é artigo de luxo, Peter! O pouco dinheiro que sobra a gente compra areia e cimento. Melhor cobrir que colorir, não acha?

– Concordo, mas continue me contando.

– Então, eu desço a pé. Saio de casa por volta das seis da manhã. Antes passo um café e levo uma bolacha para Inês, minha mulher. Ajudo ela se vestir e coloco ela assentada na cadeira de rodas. Depois desço a Avenida Nossa Senhora do Carmo, e viro na Avenida do Contorno. Ali tem um bar que funciona a noite inteirinha. Quando passo, o turco me dá um pedaço de pão dormido e um copo de café com leite. Sigo feliz, caminhando pela avenida. Às vezes como tanto que solto até um arroto bem alto. Olho em volta, com vergonha, mas confesso que gosto. Nada melhor que a sensação da barriga cheia.

– Isso é verdade, Tonho. Não conta prá ninguém, mas os arrotos de satisfação são ótimos!

– Chego até aqui caminhando. Acho que por isso que estou magro desse jeito. Tenho 72 anos, já te contei?

– Pois é, você está muito bem!

Um carro com a seta ligada nos interrompe. Tonho corre até o veículo e ajuda a motorista a estacionar na única vaga disponível naquela hora.

– Tonho, Tonho, não sei o que seria de mim sem você. Estou super atrasada, várias consultas hoje, os clientes esperando, – disse uma moça de meia-idade, trajada de branco.

– Doutora Beatriz a senhora sabe que pode sempre contar comigo. Se não tivesse vaga eu arranjaria uma.

– Eu sei, meu amigo, eu sei. Tome aqui dez reais, hoje você me ajudou demais.

– Mas é muito dinheiro, Dona Beatriz.

– Nada disso, guarde com você. Você merece muito mais!

De longe, observando o diálogo, eu fiz um sinal que tinha escutado tudo. Estava interessado nas demais respostas que Tonho ia me dar. Àquela altura estava me deliciando com a oportunidade que a vida concedeu, por pura falta de inspiração.

– É dona Beatriz, uma médica importante. Não sei o que ela faz, mas sei que é.

– Me pareceu também, Tonho.

– Então Peter, passo aqui o dia inteiro. Tem gente mal-educada, mas, na maioria, são gentis comigo.

Percebo, pela conversa, que Tonho teve algum nível de escolaridade. Ele se expressa bem, com desenvoltura.

– Você já trabalhou em algum lugar antes, Tonho?

– Já sim, Peter, trabalhei numa livraria que tinha lá na Galeria Ouvidor. O senhor já deve ter ouvido falar.

– E como Tonho, quem não conhece? Mas o que aconteceu?

– Veja só, meu patrão teve um infarto e morreu de repente. Os filhos passaram a cuidar da loja e por lá eu fiquei mais doze anos. Quando fui me aposentar, fiquei sabendo que eles não pagaram direito as coisas que deveriam pagar. No INSS me disseram que só poderia me aposentar com um salário-mínimo. As pessoas me sugeriram entrar na justiça, mas eu não quis. Onde já se viu buscar na justiça uma obrigação que o patrão tem? Fui muito leal ao livreiro, jamais faria isso, desonrando a sua memória.

– Mas é um direito seu, Tonho. E pelo que me contou, errados foram os filhos, não o seu patrão.

– Tudo é a mesma coisa, Peter. Não fiz e não faria! Logo em seguida Inês caiu de cama e não conseguiu mais andar. Tivemos um filho só que mudou pra Brasília e nunca mais apareceu. Nem no Natal ele vem, uma coisa muito esquisita. Pego com Deus para que esteja vivo e feliz!

– Certamente está, Tonho. Filhos são assim mesmo, voam do ninho e se esquecem de tudo.

– Então. Inês era cozinheira de mão cheia, mas com a parada das pernas não conseguiu fazer mais nada. Mas ela ficou comigo, Peter, imagina isso! E eu, da minha parte, fiquei muito feliz porque amo demais a minha patroa!

– Imagino, imagino.

– Como ganho muito pouco resolvi trabalhar aqui. Ajudo as pessoas e as pessoas me ajudam. Ganho um dinheirinho. Não é muito, mas me ajuda a pagar as contas. Converso com muita gente, vejo cada carro bonito passar. E as moças, Peter, cada uma mais bonita que a outra. A conversa tá boa, mas eu peço licença pois a turma da Pizzaria guarda uma quentinha prá mim, mas eu tenho hora pra buscar.

Eu disse ao Tonho que estava justamente na Pizzaria e o convidei para minha mesa. Ele não aceitou, preferiu comer sua refeição acocorado, na rua à direita. Eu respeitei.

Voltando à mesa, a história de amor tinha acabado de me ser contada. História de amor à vida, amor à Inês, amor ao filho que nunca mais viu. Apaixonado por tudo que ouvi, transcrevo aqui mais essa experiência incrível. Almocei, tomei meu gin tônica e esperei Tonho voltar para a avenida. Fui lá dar um abraço.

– Meu amigo, obrigado pela nossa conversa. Adorei. Tome aqui esse dinheiro.

– Precisa não, senhor Peter. O senhor nem estacionou aqui.

– Quantas vezes “senhor”, Tonho. Já não combinamos?

– É respeito, só isso.

– Quem deve lhe chamar de senhor sou eu. E não só pela sua idade, mas pela sua história de vida. Uma coisa me chamou a atenção: a sua blusa.

– Ich Peter, essa aqui tem muita história pra contar – respondeu Tonho, profundamente emocionado.

– Outro dia volto e você me conta. Um abraço, meu amigo, e não esquece de dar outro na dona Inês!

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6 comentários sobre “À procura de uma história de amor

  1. Linda história!! Peter você conseguiu nos emocionar com a vida de superação, simplicidade e simpatia do Tonho. Gratidão por compartilhar esta história.

  2. Peter, transcrever um fato corriqueiro, com tanta riqueza de detalhes e emoção, é uma arte. Pelo seu olhar empático, transformou uma situação comum em uma história de amor. Parabéns!

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