Presentes que me dou: A Feira Livre (4)

Rosangela Maluf

No bairro onde moro, tudo de mais importante e necessário fica a menos de três quarteirões do meu prédio. Sendo assim, com todo o cuidado que a situação exige de nós, faço “de um tudo”, sem o menor receio, sem absolutamente nenhuma neurose e com toda segurança. Não me privo de sair diariamente para resolver uma coisinha ou outra que não pode esperar!

Descendo um quarteirão tenho uma confeitaria, uma padaria, um açougue, um supermercado enorme, uma drogaria também enorme; Correios e lojas variadas. No de cima encontro um sacolão, uma floricultura, um salão de beleza, uma pequena academia, uma lavadora de tapetes, uma gelateria excepcional e outras tantas pequenas lojas. Dois bares, muito conhecidos em BH (o do Salomão e o do Cabral) encontram-se distantes apenas a um quarteirão de mim, cada um deles. Como se não bastasse esta localização privilegiada, nas manhãs de quarta tem feira livre, aqui bem em frente ao meu prédio.

Uma vez por semana, logo cedo, pego a sacola, procuro minha listinha, minha máscara, as chaves, o cartão de débito, alguns trocados e lá vou eu… 

Seu Francisco não gosta de apelidos, o nome dele é Francisco mesmo, assim como o pai e o avô. Nada de intimidades. É um senhor discreto, de pouca conversa, de fala mansa. Organiza meticulosamente os legumes que vende. Sua barraca apresenta tudo separadinho: batata inglesa, batata doce, inhame, cenoura vermelha, cenoura amarela; cada um numa caixa, bem arrumadinha. Xuxú, vagem, cebola, pimentão, tomate e por aí vai. Em todos os montinhos, as plaquinhas com os preços. Escritos com cuidado, pincel atômico, bem grosso, roxo! Já perguntei outras vezes e entre lacônicas respostas de “sim e não” soube que ele mesmo dirige a Kombi, arruma os caixotes, coloca os preços, atende os clientes, separa os pedidos, faz as contas, cobra e agradece.

Não sorri quase nunca, mas se lembra de agradecer. Envia seu Deus pra ficar com a gente e espera rever-nos na próxima semana. Penso aqui com os meus botões que o Seu Francisco possa ser virginiano…

Ao lado, Seu Caneco monta sua barraca de frutas. Sem nenhum capricho e só com o cuidado necessário, ele separa as pencas de bananas, identificadas por pedaços de papelão, mal recortados, mal escritos: caturra, ouro, prata, da terra, são tomé. Maçãs se agrupam logo em seguida. Pequenas torres de gala, fuji, verde e algumas “em promoção” – aquelas meio murchas e com pequenos amassados. Seu Caneco fala sem parar. E canta músicas conhecidas trocando a letra original por chamativos para as frutas. Com ou sem rima, canta desafinado e pergunta repetidas vezes – o que a dona vai levar?

Coloca no saco plástico as escolhidas. Dá um nó apertado. Faz as contas de cabeça. Se for dinheiro, é com ele; se for no cartão é com Canequinho. Seu filho é quem toma conta das máquinas. Nunca me perguntei o porquê do apelido, dele e do filho. Bem humorado feito o pai, menos falante, mas metido a criar gracinhas. E o curioso disto tudo: Canequinho tira onda com o que o pai fala. Morre de rir a ponto de enxugar as lágrimas na manga da surrada camisa do Galo que sempre usa. Um dia, quando Seu Caneco cantar menos e sobrar um espacinho entre as suas rimas, quem sabe terei um tempinho pra matar minha curiosidade.

Mas o melhor da feira é a Dona Penha, Tadeu o marido, e Tequinha, a ajudante. A barraca deles vende carne. É uma Kombi adaptada com um freezer bem grande, suficiente para guardar os produtos em temperatura adequada. Tem carne de panela, já cortada em pedaços, só temperar e cozinhar. Tem frango caipira, limpo, inteirinho. Tem coxa e sobre coxa, asinha, pezinhos e pescoço. Tem coração, moela, tem filé de peito, cortado em quadradinhos para strogonoff, tem quase tudo. 

Porém, o mais interessante é que os três discutem e brigam sem parar. Reclamam de tudo. Do sol, da chuva, do dia nublado, do calor, do frio, do vento. E pedem a nossa anuência: – “né não, freguesa?” Falam das notícias dos jornais, detonam os políticos sem vergonha. Falam da pandemia, dos remédios caseiros que já testaram e a solução que cada um tem sobre tudo. Nunca concordam em nenhum assunto, jamais uma trégua. Todos os dias de feira lá estão eles brigando entre si. Por qualquer motivo, um deles sobe o tom e os outros não resistem. É muito divertido ver o quanto se desgastam, por nada, por tanta coisa boba. 

Dona Penha é gordinha, baixinha e tem um lenço envolvendo os cabelos sempre presos. – Questão de higiene – ela diz com a voz rouca e estridente. Usa uma sombra muito escura nos olhos, o que lhe faz parecer sempre cansada e sonolenta. O batom é rosa forte. As unhas são enormes e pintadas de azul ou verde ou amarelo. Mas estão sempre escondidas sob luvas de plástico transparente, – questão de higiene – ela diz com a voz baixa. Sobre a roupa normal, todos quatro usam um avental branco, bem sujinho! Manchas de sangue que escorrem mesmo com todo o cuidado que eles têm. Não é fácil manter tudo limpo em um espaço tão pequeno com quatro pessoas trançando pra lá e pra cá. E discutindo, movimentando os braços, andando de um lado pro outro no minguado espaço da Kombi.

Tequinha, a ajudante, está quase sempre no Caixa. Sim, tem um cantinho sobre o mini balcão, feito com uma tábua mais larga e comprida. Um banco mais alto para as máquinas operadoras dos cartões de crédito. Sobre um pires branco, uma imagem de São Sebastião. Às vezes, se vê uma vela em um copinho, ao lado do santo; outras vezes a ajudante se esquece e o santo fica sem luz mesmo. Ela é atenciosa, faz tudo duas vezes; confere o troco contando em voz alta quando a devolução é em dinheiro. Pergunta pela família, pelos gatos e cachorros. Adora render uma prosa, interrompida para que ela registre um novo pagamento. Tequinha é solteira porque acha que vida de casada deve ser muito chata. Olha pra Penha, depois pro marido Tadeu e não sorri. O marido fala pouco, discute muito e implica com tudo.

Seu Francisco, vou aprender com o senhor a permanecer tranquila mesmo quando tudo ao meu redor estiver em efervescência. Serei calma para lidar com os dias pesados, terei discernimento e sabedoria para me calar. Não perderei a gentileza no trato com o meu semelhante, mas não me deixarei abater pelo caos. Serei disciplinada e organizada com os meus pensamentos, permitindo apenas aqueles que me fizerem bem. Tratarei também de ser eficiente, buscando me poupar de tristezas desnecessárias. Colocarei como meta me calar sempre que possível. Buscar a paz, o equilíbrio e manter o discernimento. 

Seu Caneco, tomara que esta pandemia me conceda a graça de manter o bom humor até o final. De rir mesmo quando as notícias forem péssimas, tristes, matando o resto de esperança que ainda insiste em sobreviver em nós. Que eu possa cantar, ainda que bem baixinho, falando de amor, de saudade, de folia, de carnaval. Serei sim, capaz de manter o sorriso, a gargalhada sempre que houver motivos e que eu possa ter um anjo da guarda, amigo, como o seu Canequinho. Não preciso ser tão despojada, tão desorganizada, tão “assim tá bom”’. Só de levar a vida sem tanta seriedade, ela certamente ficará bem mais leve. Mais fácil de ser vivida.

“Quarteto fantástico” me mostre como não devo agir. Parar de reclamar sem motivos e me lembrar do quanto tenho para agradecer. Que eu resista à tentação de falar sem nada ter a dizer. Que não sinta prazer em discordar, em polemizar, em discutir mesmo tendo razão. Pra quê ter razão? Cada um tem sua verdade e o respeito ao próximo vem daí. Como evitar atritos desnecessários que a nenhum lugar me levarão? Propor paz ao meu coração. Silencio e respiro. Não serei uma peça manipulada neste tabuleiro de xadrez em que todos nos encontramos hoje.

Chego em casa e vou lavar os legumes. Cada coisa em seu lugar. Junto o lixo. Descarto. Faço um cafezinho. Penso na vida, nas lições que insistimos em não aprender. Respiro fundo. Mais um dia pela frente. Lá vou eu…

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. Todas as situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade, pós/durante a COVID!

5 comentários sobre “Presentes que me dou: A Feira Livre (4)

  1. Excelente texto. O foco no aprendizado é oportuno. Lembrar que a vida, o cotidiano sempre nos oferecem momentos de aprendizado, é mostrado no texto de forma leve e agradável. Parabéns e obrigada Rosangela por nos brindar nesta manhã dominical com um texto tão bom.

  2. A vida vai ensinando … o texto é muito bom. Desperta e aguça a curiosidade do leitor. Recria, com detalhes, o ambiente múltiplo de uma feira livre, com seus personagens típicos muito bem caracterizados. Dessa mistura de tipos e atitudes, a autora retira aprendizados… e a vida segue ensinando!
    Parabéns, Rosângela!

  3. No decorrer da vida,temos muitas histórias lindas para contar.Precisa apenas de pessoas que tem um olhar e a sabedoria para escreve-las.

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