– Que língua amarela é essa, menina!
– Uai, o pão que comi na merenda, mãe.
– Mas você não levou seu pão com bife?
– Levei, uai!
– E que amarelo é esse na sua língua? Vem cá, abre a boca e me mostra.
– Eu troquei de merenda.
– Trocou como?
– Dei meu pão com bife pra Neusa Santos.
– Quem é Neusa Santos?
– A menina que senta na mesma carteira que eu. Já te falei, a da blusa do uniforme sempre suja de café.
– Sei, tô me lembrando. E trocou por quê? Não tava bom?
– Tava sim, mas no almoço eu já tinha comido um bife.
– E trocou com o quê?
– Ah, uma delícia o pão amarelo que a Neusa Santos leva de merenda. Cheio de açúcar por cima, um açúcar que fica bem amarelo. A mãe dela que faz.
– Deve ser um tipo de rabanada?
– O nome eu não sei, mas ela adora bife e eu adoro o pão com açúcar amarelo. Ela pede pra trocar e eu troco.
– Você acredita mãe, que na casa da Neusa Santos não pode comer carne? Ela tem cinco irmãos, o pai é pobre e eles só comem frango, que tem no quintal. Quando ela sente o cheiro do meu sanduíche, quer logo trocar.
Eu perguntei pra ela: por que o seu pai não deixa fazer bife?
Ela respondeu: – Não é que ele não deixa. É que o meu pai não tem dinheiro. Carne custa caro. Aí minha mãe pega o pão que sobrou, molha no leite com água, põe no fogo pra fritar. Precisa esperar um pouco. Tira do fogo, espera mais um tempo, aí põe açúcar e anilina amarela. Quando esfria coloca canela e mais açúcar. Já cansei de comer isso daí. Por isto não gosto mais.
– Ah, eu prefiro seu pão doce. Vão trocar? Te dou meu pão com bife e você me dá seu pão amarelo.
Silêncio…
– Mãe, o pai da Neusa Santos também trabalha na Belgo. No mesmo lugar que o papai. Por que ele não pode comprar bife pra Neusa? O meu pai compra, né?
– É, filha, na usina tem gente que ganha muito dinheiro, tem quem ganha mais ou menos e tem aqueles que ganham pouco. Quando são muitos os filhos, tudo fica mais difícil.
– Se eu pedir pro papai, ele arruma um jeito do pai da Neusa Santos ganhar mais dinheiro e poder comprar carne?
– Não, filha. As coisas não são tão simples assim, Tem chefes, tem gerentes, diretores e presidente. Cada um faz as suas coisas. Não se pode fazer o que se quer. Um dia você vai entender.
– Então a Neusa Santos vai ficar sem bife. Ou então só vai comer quando a gente trocar merenda. E se os irmãos dela não tiverem com quem trocar merenda? Ninguém vai comer bife nem uma vez?
– Vai tirar o uniforme. Toma o seu banho. Seu livrinho de história tá em cima da cômoda. Daqui a pouco faço o seu toddy e preparo o seu lanche.
Foi o meu primeiro contato com a desigualdade social.
Aos sete anos a gente não possui discernimento algum. Não consegue olhar para as coisas analisando e avaliando. Não entende o que se passa ao nosso redor. Quer consertar sem nem saber como se conserta, e nem se pode ser consertado. Por causa da minha colega de sala, do segundo ano primário, tive olhos pra ver uma realidade diferente da minha. Uma realidade de vida que não sabia que existia. A diferença de classe. Os menos favorecidos.
E assim, fui seguindo pela vida, sempre e cada vez mais, à margem do rio.
Margem esquerda, é claro.
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