Final de tarde, começando a escurecer. Faz frio e venta muito. As janelas batem. Uma chuva forte parece querer cair. Um raio, um barulhão. No fogão, a água começa a ferver. Vou correndo pegar a lata de café. Me esqueci de colocar o pó no coador, fiquei da janela olhando a chuva chegar. Abaixo o fogo, passo o café, encho o bule e coloco na térmica. O cheiro é muito bom. Trovões. Mais um raio. A luz pisca: uma, duas vezes e pronto. Estamos no escuro. Sócrates e eu.
Velas, onde encontrá-las? Me abaixo até o armário e dentro da lata azul encontro três velas inteiras e alguns tocos já usados. Outro raio, outro clarão. Acendo as velas. Pego minha caneca com o café e me jogo no sofá. São seis e meia da tarde. Sócrates vem e se enrosca ao meu lado. Boceja, lambe a patinha, se espreguiça devagar, não faz ruído algum. Preciso ver se tem ração em seu coxinho. Pego a vela acesa, reponho sua comida e coloco a água também. Estamos apenas os dois, sozinhos, ouvindo a chuva que cai.
Não sei por que, mas me lembrei das férias de janeiro quando passávamos o verão na praia. Amigos dos meus pais com os filhos, alguns vizinhos também com os filhos e nós, a família inteira. Muita gente na rua, nos finais de tarde, esperando que anoitecesse para que a criançada fosse à caça de vagalumes. Era uma festa à parte, pois além das manhãs ensolaradas, céu azul, sol forte, ondas deliciosas e água morninha, era permitido às crianças maiores acender fogueiras, desde que houvesse um adulto por perto para orientar e impedir excessos. Numa noite chegaram uns amigos dos meus pais, com dois filhos e duas filhas. Os adultos ficaram na varanda tomando cerveja enquanto as crianças organizavam a fogueira.
– Cuidado você aí que ainda é pequena! – Não fique perto do fogo. – Não chute a madeira, menina! – Menina, eu? Pequena? Com onze anos? Só me restava, então, sentar no murinho e assistir ao colorido das labaredas crescendo com o vento. Um dos garotos se aproximou. Ficou de pé, encostado no muro e perguntou se havia um vidro vazio em casa. – Não sei – eu disse – mas posso procurar. Para quê? – Uai, você nunca encheu um vidro com vagalumes? – Eu? Vagalumes? Num vidro? Não. – Vai lá e acha um vidro, com tampa. Vou te mostrar, você vai ficar boba.
Nunca me esqueci do Casemiro.
Era um menino também, apenas dois anos mais velho que eu. Perguntava muito, queria saber de tudo e para tudo tinha uma explicação. Era um garoto bonito, mas eu, de tão tímida que era, pouco olhava para ele. Nunca me esqueci dos vidros cheio de vagalumes que também ajudei a encher. Cada pequeno abajur era um acontecimento. Indescritível. Me lembro até hoje dos muitos insetos soltos no ar. As pequenas lanternas, acesas na bundinha, brilhando e piscando. Passamos algumas horas nos divertindo em pegar os bichinhos e admirar o pisca-pisca dos pequeninos desorientados, querendo liberdade. Durante as duas semanas de férias, raros os dias em que não houvesse a sessão vagalumes! Eu, sempre reservada e de pouco falar, dava risadas de contentamento, feliz com toda aquela novidade, inesperada e diferente.
Olho o relógio. Sete e meia. Uma hora desde que a luz se apagou. Neste tempo todo fiquei com Sócrates no colo. A chuva continuava. Continuei de olhos fechados, ouvindo os pingos no telhado e revivendo com saudade os tempos divertidos da minha infância. Pego as velas. Deixo uma no banheiro e a outra levo para o meu quarto. Vou esperar que a luz volte ainda hoje. A chuva já parou, quase não venta mais. Já basta de escuridão. Abro as janelas, respiro o cheiro bom de terra molhada. Tiro os sapatos, dependuro a bolsa no cabideiro. Levo o casaco para o armário e me deito. Sócrates vem e se cola bem pertinho de mim. Tiro o relógio e o coloco na mesinha de cabeceira. A vela ilumina um porta-retratos. Ele e eu, quando ainda éramos nós dois. Na foto, tirada após uma apresentação de La Stravaganza, de Vivaldi, no teatro Municipal do Rio de Janeiro, mostramos o nosso melhor sorriso e o olhar de cumplicidade.
Quase oito horas e nada da luz voltar…
Por estes inexplicáveis caminhos da vida, vinte anos depois, reencontrei, na Sinfônica, aquele menino que me ensinou a encher o vidro com vagalumes. Depois de tanto tempo, nem acreditei. No primeiro ensaio, já aprovada como violinista, fui participar da reunião do grupo. Não o reconheci. Houve uma troca de olhares e só. Eu era a novata e muito contida, me mantive reservada todo o tempo. No intervalo ele se aproximou sorrindo e disse: – Então, aqui está a menina dos olhos de ameixa em calda! Me lembrei que era assim. Naqueles tempos, era assim que ele se referia à cor dos meus olhos. Me lembrei então quem era ele. O Casemiro. Sorri de volta e nos abraçamos. Ele tocava cello e já estava na orquestra há muito tempo, bem antes de mim. Foi uma alegria imensa revê-lo e retomar o que ficara da infância. Logo em seguida surgiu um grande interesse, um carinho enorme e, inevitavelmente, o namoro. Vieram as viagens com a orquestra, os passeios nos finais de semana, só nós dois. Os jantares com os amigos, o almoço de domingo em casa de seus pais, os filmes compartilhados, os livros lidos, as poesias declamadas em alta voz. Muitos risos. Muitos.
Entretanto, nos últimos oito anos, me fechei para o amor, para a vida e me tornei uma pessoa solitária. Solitária e triste. Triste e sem família. Não tive filhos. Não desejei tê-los e Casemiro também não. Não tenho mais família; meus pais já falecidos, uma irmã morando em Nova York e a outra, a mais nova, casada com um brasileiro, morando em Amsterdã. Raramente nos falamos e tenho delas poucas notícias. Também não me interesso nem um pouco. Não tenho amigas. Nem amigos. Algumas pessoas mais próximas são os meus colegas da Orquestra Sinfônica.
Quinze minutos faltam para as dez. Estou ficando irritada com a falta de luz. Preciso de um banho bem quente. Sinto muito sono, estou cansada. Tive um longo dia na Faculdade de Música. Ouço o silêncio absoluto. Respiro fundo e tento manter a calma. Levanto-me e carregando a vela que já está no finalzinho, vou até a cozinha pegar outra grande na caixa azul. Abro a geladeira e vejo a garrafa de vinho que deixei ontem, ainda pela metade. Pego uma taça. Volto para cama. Coloco o Sócrates bem pertinho de mim, abraço o bichinho e fico assim, bem quietinha.
Minha vida com o Casemiro foi cheia de paixão. O amor só veio depois e antes que a monotonia tomasse conta de nossas vidas um AVC fulminante encerrou nossa história levando tudo que eu tinha de melhor: a alegria, o entusiasmo, a paixão pela música, a paixão por Casemiro, a paixão pela vida.
Às vezes me pergunto se foi mesmo real tudo o que vivemos. O reencontro, vinte anos depois daquele verão na praia, as coincidências que se seguiram, os mesmos gostos, o espírito aventureiro que nos levou para viagens inesquecíveis. As lembranças. As gargalhadas. O mau humor de vez em quando. As pequenas brigas e as pazes, sempre tão quentes e divertidas. A rapidez com que tudo foi acontecendo nos deixava em estado de graça. Tudo muito intenso. Muito verdadeiro. Absurdamente inesperado. Mas durou pouco tempo, muito pouco. Sem ele fui devagarinho perdendo o brilho, a luz, o entusiasmo. Tudo e todos foram se tornando pequenos, pálidos, desbotados numa tela sem vida e sem moldura.
A luz voltou, ainda bem. Terei um banho quente, meu pijama macio, um edredom quentinho, o fiel Sócrates aos meus pés. Vou ler até o sono chegar. Vou pensar novamente em Casemiro. Vou me lembrar dos dias na praia, barulhos e ruídos, risos e gargalhadas. Vou me lembrar dos vagalumes. Das brincadeiras de rua. As manhãs na praia, o voleibol na tarde ainda tão quente. Danças no quiosque do Zé, na vesperal dos domingos. Como a vida pode ter mudado tanto. Como me transformei nesta pessoa sem sonhos. Ando cansada desse ser amargo que me tornei. Por que a gente se permite viver assim, sem vontade, sem desejo? Se ainda quero viver, preciso acordar para a vida. Reagir. Guardar as boas lembranças, guardar as belas fotos, os vídeos tão divertidos. Saber que o passado passou e que ainda existe um futuro mesmo que a gente não coloque nele muita esperança. Respiro fundo. Coragem, mulher, coragem! Vamos lá, amanhã é dia de concerto. Viola d’Amore, concerto em D minor, outra peça de Vivaldi. Você, como solista! Ânimo.
Ainda que não saiba por onde andam os vagalumes, pensarei nele: o Casemiro deve saber…
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