Sandra Belchiolina
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Confesso que esse foi o texto mais difícil de escrever até hoje. “Fardinha desse Covid” – como circulava num post na internet. O desejo da escrita somente apareceu quando me lembrei de uma “conversa fiada”. É impossível uma pessoa sensível estar nesse momento da pandemia pensando que a vida continua e “está tudo normal” ou “novo normal”, como alguns denominam. Para mim não tem nada de normal e nem tenho a pretensão de chamar de novo normal àquilo que tira a liberdade das pessoas.
Considero a falta de vontade de escrever como uma reação saudável, pois haja criatividade para esses dias. Passamos das fases das lives, dos filmes, os armários arrumados – no meu caso estão adiados (postergo o máximo). Minha vida está resumida em três casas – minha, da filha e mãe (estamos cumprindo o isolamento). Saio no máximo três vezes por semana para caminhar na minha região e onde não há fluxo de pessoas; lavo, cozinho para mim mesma, trabalho e estudo on-line.
Mas, cá para nós, depois de 100 dias, a gente satura. Esse real que nos assola e esfrega na nossa cara o impensável e revoltante luto das mortes mundiais e que no Brasil já somam mais de 81.000 vidas perdidas. E ainda temos de lidar com a indiferença de pessoas, aquelas que andam por aí com o pensamento mágico de que o vírus não lhes atinge. Olhe que às encontro nas ruas! É assolador! Parece que a educação pouco está valendo para aqueles que não se importam com o outro. E, os que governam entram com punições – as multas. Triste tudo isso!
Dentro desse contexto de tudo over, tivemos de nos voltar para nós e agora vou falar das brisas que nos acalentam. Percebo nesse mundo virtual, em que habitamos no momento, muitas pessoas recorrendo a elas – as memórias.
Em tempo de whatsapp, se quero conversar, pergunto aos amigos se estão disponíveis para prosa. Gosto de falar e não ficar passando mensagem-zinhas chatas e despersonalizadas. Gosto de voz, de reticências, silêncios e tons.
Assim, num dias desses, envio mensagem para uma amiga perguntando se poderia conversar. Retorna falando que estava atendendo – é psicanalista, se poderia ser depois. Respondi que não tinha pressa e que a conversa era fiada.
E essa palavra – fiado, foi se abrindo em significações… Primeiro, questionei-me se ela conheceria o termo muito utilizado no interior de Minas Gerais. Como era nascida e crescida nesse contexto, conclui que saberia. E fui pensar nesse significante: fiar. Lembrei-me de fiar o algodão e dos novelos de fios. Esse refinamento de um produto da natureza para outro que nos veste, agasalha, nos seca após o banho, cobre nossas mesas, paramenta nossa cozinha… Lembrei-me da roca e da dobradeira de minha avó, hoje aqui no meu apartamento em Belo Horizonte. Antes, na fazenda dos meus avós: Alacoque e Vô Honório, lá nas Grotadas – região antes pertencente ao município de Santo Antônio do Monte, agora, de Lagoa da Prata.
Lembrei-me dos novelos de linhas, que em teceduras vão se transformando, muitos, em obras de arte. Como os crochês de minha mãe que é exímia tecelã.
E a conversa com minha amiga foi assim: um novelo fiado de palavras na tecedura de nossas vidas.
Contei para ela sobre minha dúvida e seu destino e de imediato me respondeu: “em confiança”.- “Como assim?”- perguntei.
– Conversa em confiança. Lembra que antigamente os armazéns vendiam fiado? Vendia na confiança de que o cliente iria pagar.
Como não lembrar? Eu, filha de comerciante, papai possuía um armazém e ainda hoje tenho viva memórias de sua luz, o dispositivo dos balcões e tonéis de grãos, das prateleiras de doces e conservas. E, claro, dos biscoitos que eu saia de minha casa para lá comê-los sentada no banco da praça que ficava em frente ao Armazém Castro. E, também, de suas cadernetas e suas anotações dos fiados com a caligrafia do meu pai – um tesouro!
Os armazéns foram engolidos pelos supermercados – esses estabelecimentos frios com mobiliário nada aconchegante. Lamento a transformação dos armazéns e ainda torço para que voltem com seu charme e calor. As ambientações desses estabelecimentos acompanharam as transformações do ser humano. Nas últimas quatro décadas, no Brasil, o fiado – “em confiança”, pouco existe. Estamos ficando um país chato, tudo é na base da justiça, em processo de tribunais. Para onde foram o bom comprador e o bom fornecedor – a relação mútua de confiança?
Dia 20 de julho foi o dia da amizade. Recebi muitas mensagens e uma eu distribuí, ela faz laço e tece fiando – em confiança. Desejo aos amigos um Brasil menos chato e mais responsável, mais confiável e que a LEI esteja interna – constituição do sujeito, e não estabelecida por uma jurisdição externa.