O que não tem remédio - fonte: Pixabay

O que não tem remédio

Há muito tempo me chama a atenção como o senso comum associa a ideia de se “ter saúde” ou de “estar curado” com a noção de se ingerir medicamentos. Claro que se ter saúde é muito mais do que isso. Mencionei num post anterior uma obra da artista Susie Freeman – Phamacopeia, que denuncia os abusos quanto ao uso de medicamentos no mundo moderno.

Este cenário não foi pintado a partir do nada, ele carrega fortes influências da assimilação do modelo biomédico ocidental na compreensão do que seja saúde, com o forte papel da indústria farmacêutica no mundo capitalista. Quanto mais gente doente, vende-se mais medicamentos. Está aí a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que amplia o já extenso rol de transtornos mentais, o que nos leva a pensar numa medicalização da própria existência.

Atualmente, há uma certa naturalização do uso dos medicamentos para os mais diversos males, sintomas, dores e angústias. Há medicação para quase tudo: para estados de luto e de tristeza, para  emagrecer, para dormir, para acordar, para se ter prazer.

Claro, não sou contra os remédios, quando bem indicados, têm papel crucial. É inegável que eles curam doenças e aliviam sintomas. O que me chama atenção são alguns aspectos relacionados à cultura da felicidade e do imediatismo em que estamos imersos, e que fazem a balança pender às vezes para o caminho mais fácil, porém não sem os efeitos colaterais.

A questão da automedicação, dos diversos efeitos colaterais (toda medicação têm) e da dependência psicológica são exemplos claros da aceitação acrítica do modelo “prescricionista” de soluções prontas para todos os nossos males, sejam físicos ou mentais. 

O que uma dor de cabeça quer dizer sobre mim mesmo? Por que a enxaqueca aparece sempre em padrões regulares nos domingos à noite? A minha insônia, que me convoca de madrugada, não é igual a da minha amiga, será que o “tratamento” é o mesmo?

Nesta perspectiva, é fundamental que o sujeito se questione sobre seus próprios sintomas e, em alguma medida, os sustentem. Em seu texto “Como engolir a pílula”, Éric Laurent ressalta a necessidade da postura ética do médico na articulação entre às potencialidades dos medicamentos, a demanda do próprio sujeito e a relação com seu sintoma.  

Laurent também diz das quatro formas distintas estabelecidas na relação entre o sujeito e os medicamentos: o phármakon, o placebo, o mais-de-libido e o anestésico, que detalharei num próximo texto.

No momento, acho importante destacar que a crise da Covid-19 evidenciou uma busca incessante pela cura definitiva e por medicamentos eficazes. Neste cenário, por negacionismo eterno da realidade, por busca de soluções e saídas fáceis ou mesmo por necessidade de se ter esperança, os medicamentos acabam mesmo assumindo os diversos papéis acima e estão sendo usados de maneira acrítica e desprovidas de razão.

Tem gente que pode tomar prozac, ritalina, cloroquina, ivermectina, mas nunca estará, de fato, curado. 

Referência:

– LAURENT, E. Como engolir a pílula. Ornicar? 2004.

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