O circo

Peter Rossi

O cheiro de serragem impregnava nossas narinas. Tudo começava com o desfile no meio de uma tarde de sábado. Em primeiro lugar vinha um carro conversível, meio amassado é verdade, e de pé, acenando para todos que assistiam, um senhor barrigudo com um paletó de lantejoulas azuis e uma indefectível cartola preta. Em seguida uma camionete Rural Willis de duas cores com um autofalante sobre o teto, lembrando dois cogumelos em sentidos opostos. Dali brotava uma voz esganiçada anunciando que no dia seguinte estrearia “o maior espetáculo da terra”. Era o “Circo Los Hermanos” que chegava na minha desajeitada e tímida cidade. O desfile continuava com alguns caminhões apinhados de bailarinas com maiôs rosa e meias arrastão no mesmo tom. Vinham também algumas jaulas com as feras mais perigosas que já se tinha visto. Fechando o desfile uma trupe de palhaços com flores de plástico na lapela a espirrar gotas de água nas crianças atentas, nos colos das mães. Atrás, um preguiçoso elefante com um manto indiano no lombo, e sentado sobre ele um marajá dos trópicos, dorso nu e uma calça bufante.

Ficávamos todos maravilhados! Era um tal de correr atrás para ver onde ia dar aquela quermesse em forma de procissão, tudo embalado nos últimos sucessos do rádio.

A noite de sábado duraria a acabar e a manhã do domingo parecia eterna. Como nos cansávamos a esperar a matinê das 11h00. Muito antes disso já nos postávamos ao redor da imensa cabana de lona com arquibancadas de madeira tosca, umas apoiadas sobre as outras e todas debruçadas em singelos andaimes de canos hidráulicos. Mas tudo funcionava perfeitamente bem. 

No centro um picadeiro em hexagonal, forrado de serragem e cercado por retângulos que um dia foram coloridos. No centro do picadeiro o apresentador, com o mesmo paletó de lantejoulas azuis do desfile da véspera anunciando as melhores atrações: o mágico hipnotizador; Neiva, a contorcionista; os irmãos Gonzales – os reis do trapézio “sem rede de proteção”, apressava-se em acentuar. Seguiam os anúncios do Mr. Sanches, o homem mais forte do mundo, que arrastava uma camionete pela barba. Um homem com uma roupa arrancada da época das cavernas, presa a um só ombro e intencionalmente rasgada. Por fim, era interrompido o apresentador, que depois descobrimos era o hipnotizador e que também se vestia de índio norte-americano a se transformar no atirador de facas, por dois palhaços, um gordo, outro magro, com sapatos enormes e descascados. Meias listradas e roupas absurdamente dissonantes. Um empurrava o outro, o outro empurrava o um e todos nós empanturrávamos de rir.

Ao fim do espetáculo estávamos maravilhados, apaixonados, esperando a apresentação do último dia da turnê para juntos fugirmos, como se, de um momento para o outro, como num passe de mágica, descobríssemos em nós um talento raro, a capacidade de executar um salto mortal, duplo, carpado.

A rotina do circo, entretanto, não se resumia aos espetáculos, todos por nós assistidos, dia após dia. Terminada a aula ao invés de nossas casas, corríamos desabaladamente para o Campo do Retiro esporte Clube, a tempo de assistir um almoço improvisado de nossos artistas. Ficávamos de longe esperando um aceno, um sorriso.

Vivíamos o circo, queríamos estar ali, junto aquela profusão de cores desbotadas e objetos remendados. Pouca ou nenhuma importância tinha tal fato, o essencial era o convívio com os ciganos exóticos, na linguagem de nossas mães.

De tanto estar por perto, rondando, acabávamos por ser notados. O apresentador, numa dessas vezes, nos ofereceu ingressos para toda a semana, em troca de nossa ajuda para lavar o elefante. Imaginem só – lavar o elefante! Isso mesmo! Posso dizer que, dentre as coisas mais bizarras que já fiz na vida, dentre elas está ter esfregado as costas de um elefante com um esfregão com um cabo gigante, dependurado numa escada de madeira, em “v”, de cinco degraus. Numa mão o esfregão, noutra uma mangueira de um vermelho desgastado a espirrar água por centenas de pequenos furos, tornando aquelas tardes febris em deliciosos banhos de chuva artificial.

O elefante, de seu turno, permanecia absolutamente quieto. Os meninos ao seu redor maravilhados com aquela criatura imensa. Eu dependurado na escada, equilibrando numa perna, a mangueira presa entre os dentes e o esfregão pulando de uma mão para a outra. Terminava absolutamente encharcado, mas inteiramente feliz. Era especial lavar o elefante. Você que agora me lê, se ainda não teve a oportunidade, procure o zoológico mais próximo e, em tempos tão politicamente corretos, use todo seu poder de sedução a convencer os responsáveis de que não se pode morrer sem lavar um elefante.

Ia me esquecendo do equilibrista que, segundo o apresentador, “levava a vida no arame”. De fato, munido de simples e rotas alpargatas, mantinha-se equilibrado em cima de um cabo de aço.

Como era bom o circo! Como era colorido, ainda que desbotado! 

E os palhaços, esses nossos cúmplices, nos levando a imaginar que nunca existiram problemas em nossas vidas, que o simples da vida é dar risada do tombo alheio. Sorrir com a cara pintada e uma peruca vermelha. O suor teimando em borrar os brilhos, as rugas e o cansaço tentando desfazer a máscara de herói sem capa. Os palhaços eram verdadeiros heróis, mas não sabiam voar. Perdiam sempre, nunca atingiam seus objetivos, quase sempre estavam estatelados no chão, eram facilmente enganados, porém por eles dávamos nossas vidas pequenas. Os palhaços eram sempre irmãos por quem lutaríamos até cansar. Naquela época pensei até em ser palhaço, mas a vida me desviou sem justo motivo, e o fato é que hoje não tenho o riso tão fácil. Minhas memórias voam e ao lembrar desses momentos simplórios. Me asseguro de que a vida era realmente boa.

Aliás, como conceber a vida sem circo? Não sei se eles ainda existem. Me dou conta que as páginas do calendário me trouxeram outros tempos, amarrados em décadas, e que não vejo mais nenhum circo. Não me lembro da última vez que fui em um. Como disse, nem sei se existem circos ainda. Que pena! 

Acho que essa turma conectada pelas estradas eletrônicas se divertiria com simples pantomina, com saltos absurdos, com mágicas imagináveis, com facas atiradas contra a pobre moça com duas tranças negras, amarrada a um grande disco de madeira, rodando sem parar. Talvez até gostassem do espetáculo, respeitada a pequenez de seus efeitos especiais. Só não teriam a sensação do quanto o circo mudava a rotina de nossas vidas. O quanto a nossa cidade se contorcia quando o espetáculo era apresentado toda semana. O quanto nossas tristes noites de lua eram abrilhantadas.

Essa história de pensar em fugir com o circo era fato corriqueiro. Ocorria mesmo. De tão encantados com aquele mundo multicor, imaginávamos que vida boa era aquela, sob a lona suja de um acampamento.

Para nós, meninos daquela época, palhaços, pipocas e algodão doce eram os únicos ingredientes indispensáveis para ser feliz. E éramos felizes, mesmo não sendo palhaços, mesmo com os olhinhos apertados de medo de que o índio americano errasse algum arremesso de faca. 

Os shows sabíamos de cor, mas fazíamos questão de esquecer para permitir o sobressalto de nossos corações quando o leão entrava em cena.

O saudosismo não me impede de ser feliz mesmo sem o circo, mas sou privilegiado por ter na lembrança cada um desses espetáculos. Me recordo das músicas, das roupas, das cores, dos cheiros, dos sabores. 

Salve o circo dos meus sonhos! Ele mantém vivo o sobressalto no meu coração, mesmo sabendo de cor o espetáculo que meus olhos não mais verão. Estendida a lona do meu circo nas saudades da infância, lembrança de um tempo que não volta mais, mas que insiste em se manter vivo, afinal, lavar elefantes não é prá qualquer um, lavar elefantes não é coisa que mereça ser esquecida.

 

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