– Sinto saudades, não. Lembrança boa ou ruim, nenhuma diferença me faz. Minha vida é como um livro de gravuras, umas coloridas, outras em preto e branco, e eu vou passando as páginas. Mas saudade, ter vontade de voltar ao passado, porque foi bom, porque foi gostoso, não tenho. De nada. Vejo fotos, e nem parece que sou eu. Não me vejo em lugar nenhum. Como se nunca tivesse guardado um sorriso, uma imagem que me fizesse feliz.
Não me lembro de mais nada de bom; nem da minha infância, de pai, de mãe, da fazenda velha, das tardes de calor bravo, o banho no rio, nada lembro com gosto, lembro só por lembrar.
A professora, as meninas da escola, as festas, as procissões na igreja, o canto coral! Tá tudo registrado, sabe. Mas só isso. Casamento, nascimento de filhos, morte de parentes, nada. Eu vivo numa bola de vidro, uma redoma, é isso – eu vejo tudo e todo mundo me vê, mas é só.
E tem mais, o futuro me assusta. Tenho medo, muito medo de ser coisa passageira, assim, só um fogo de palha e depois, o que será de mim depois? O que será de nós, se não der certo? E se der certo, como é que vamos fazer? Vejo solução não.
– Olha só, presta atenção. Outro dia mesmo lá na praia, nós dois deitados na areia, começou a chover, lembra? A chuva caía assim, comprida, e eu fiquei ali pensando na minha vida, querendo sentir saudade de nós dois, daquele momento, de alguma coisa, sem conseguir.
– Querendo sentir cheiro da chuva, da areia molhada, a maresia, mas eu não podia, não conseguia. Aí, João, você me fala essas coisas todas. Fico sem jeito. Sou mulher acostumada a ouvir coisas assim não. Fico sem jeito, fico envergonhada, me sinto mal, mal mesmo. Mas também reconheço, culpa você não tem! Nas coisas do coração a gente não manda. Mas não posso mentir nem deixar que você se engane a meu respeito.
Ontem fiquei pensando enquanto você dormia no sofá.
Que diacho, sô. Nesta altura da vida, o que este homem tem que me dispara assim o coração, deixando ele acelerado, batendo que nem doido? Como pode uma mulher na minha idade! Que resposta? Resposta do quê? Fiquei ensaiando, falando baixo um discurso para dizer a você que minha resposta é não. Acho que já chega. Melhor parar por aqui. Poupar sofrimento para nós dois, João.
Os olhos de João se fizeram mais claros ainda e dentro daquele azul eu quis mergulhar. Dizer que nada daquilo era verdade. Que eu faria o que ele quisesse. Que pouco me importava se fosse ilegal, imoral, inadequado, proibido, censurado. Ficamos em silêncio por longo tempo. Eu havia falado demais, muito mais do que ele precisava ouvir, e ele nada dissera. Pegou-me pelas mãos e fomos caminhando.
Do aeroporto de Vitória desci na Pampulha e João seguiu para Montes Claros, ficava mais perto de Milagres. Viemos em silêncio. Olhares cheios de carinho, mas nenhuma palavra sobre nosso ponto de interrogação.
Venho marcando um xis no calendário da minha agenda.
Faz 32 dias que não falo com João.
Mais de um mês que voltamos das férias.
Às vezes me arrependo de ter sido tão direta. Poderia ter sido mais flexível, deixado as coisas como estavam. E se ele não me procurar nunca mais? Se eu estiver perdendo a maior chance da minha vida? Tantas perguntas sem respostas me deixam com dor de cabeça.
Abaixo o som da TV. Vou até a cozinha. Preciso de uma neosaldina. Procuro a caixinha de remédio. Na última gaveta. Por debaixo da porta alguém empurra um envelope. Pego curiosa e agradecida ao seu Antenor, que me coloca também uma revista de fofocas. Nem abri a porta pra agradecer. Cheiro o envelope, leio o destinatário e o remetente: João!
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João!
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Rainha das palavras! Encantei com o texto!
Já estava desanimada com o texto. Afinal, nenhuma história de amor deveria terminar com tamanha interrogação. Mas, a surpresa no final resgatou toda a esperança. O amor venceu a desesperança. Parabéns pelo texto, e, especialmente, pelo "gran finale".