Cheguei na casa da minha irmã disposta a resolver tudo em uma semana.
Procurar o cartório, conferir a papelada, ver o preço do terreno e procurar um interessado. Entretanto, apesar da minha disposição inicial, a semana não foi suficiente para resolver tudo. Voltei para a capital. Vim rezando para que aparecesse um comprador bom e honesto, fácil de lidar e disposto a pagar o preço justo pelas terras, nem um centavo a mais. Tinha muita esperança de que o comprador apareceria. Eu precisava muito daquele dinheiro, muito mesmo. Rezei mais de dois meses sem parar, em casa, na igreja, no trabalho, dia após dia, debulhando o terço, até que Deus um dia me ouviu.
– Dona Heloísa, telefone pra senhora.
– Já vou, gritei saindo do banheiro. Quem é? Perguntei. Isa falou assim, é de Milagres.
– Ah! Alô, sim, sou eu, pois não, como vai o senhor? É deveras, estou vendendo sim. Sei. Conhece o Seu Caldeira? Do cartório? Pois é, está tudo com ele, o senhor pega as informações e depois, se for do seu interesse, liga de novo. Podemos marcar para ver o sítio, assim o senhor conhece. Vê se é do seu agrado. Tá bom, nada a agradecer, para o senhor também.
Foi a primeira vez que falei com João.
Rezei mais um mês sem parar. Podia tanto dar certo. Havia ligado para a minha irmã, sondando quem era o interessado, o tal homem, e ela me havia dado a ficha completa. Fiquei esperando que ele voltasse a ligar, mas nada. Resolvi dar um pulo até Milagres e de lá até Solidão. Aproveitava o feriado de Corpus Christi e, quem sabe, dava um empurrãozinho nas coisas paradas.
Fui de ônibus. Sentia-me insegura ao dirigir sozinha e as meninas tinham compromisso. Cada uma viajando para um canto, com amigos de faculdade. Também tinha outra coisa, achava até bom aproveitar a viagem de ônibus. Me dava um entendimento das coisas. Via tudo de um jeito tão calmo, com o tempo ali passando devagar. Momentos de muita reflexão.
Assim eu achava, e pensava também que estando sozinha colocava melhor minhas ideias no lugar. Admirando a natureza, as cores, as coisas e pensando na vida, nas pessoas, em tudo que já havia se passado, no que acontecia no presente e o futuro. Como seria? O que nos reservava o futuro? Pensava nas meninas. O que seria da vida de cada uma delas? E da minha vida? Não sabia nada de nada. A gente nunca sabe de nada, nada mesmo.
Cheguei em Milagres. Fany foi me pegar na rodoviária. Ela e a neta, filha de Dulce. Tão engraçadinha. Perguntadeira, curiosa, linda a menina, mas chatinha – eu não tinha mais paciência para lidar com crianças, ainda mais pequeninas assim. Quatro anos de pura perguntação, não nos deixava conversar direito.
– Minha irmã, já sei tudo sobre o tal do homem. Você se lembra do Seu João? Aquele do Mato Cerrado? Do café. Lembra sim. Que a mulher dele perdeu o primeiro filho e ele, de tristeza, ficou mais de um mês bebendo sem parar. Foi encontrado quase morto, lembra? Passou tempos no hospital municipal, sem memória e sem fala. Ficou muito tempo sem aparecer. Quando saiu foi direto para a fazenda. Sumiu de Mato Cerrado. Ah, claro que nós contamos para você.
– Quando ouvimos falar dele de novo? Quando ele tirou uma menina da zona, engravidou a coitada e levou a pobrezinha para a fazenda. Dizem que acabou se casando com ela. Foi um falatório, não se falava noutra coisa aqui na cidade. Fazenda dele, sabe onde é? Perto da sua, pros lados de Solidão. Então, foi só enchendo a mulher de filho, uma escadinha. Lembrou? Pois é. Ele é o comprador da sua terra. Já falou na barbearia do Jonas que vai comprar mesmo a fazendinha. Tá pertinho das terras dele. Se eu fosse você, aumentava o preço. O homem tem muito interesse nas terras, Sá!
No dia seguinte fui ao cartório. Falo com um, falo com outro, cumprimento amigos, velhos conhecidos de Milagres. Contudo, saio de lá sem os papéis de que eu tanto precisava. Peço pra Seu Honório me levar até a fazenda do Seu João. Fany vai junto. Poeirão daqueles, bem vermelho, parecendo nuvem. Fico triste com o que vejo pelo caminho. Tudo tão seco, tão diferente do tempo em que tocávamos a fazenda. Sempre difícil, é verdade, mas agora, quase impossível. Fany não para de falar. Conversa comigo, dá ordens para o Seu Honório e eu caladinha no meu canto, pensando, pensando…
Voltamos no mesmo pé em que viemos. Seu João não estava. Deixei com Corisco o telefone da casa de minha irmã.
– Que ele me ligue quando chegar, falei para o ajudante. Careço de falar com ele, é urgente. Diga que é a dona da Solidão, estou aqui só até amanhã e depois volto para a capital.
Voltei para a capital e nada de falar com o Seu João. Desanimei. Tive a impressão de que ele desistira do negócio, mas não quisera falar, sei lá. Vai saber o que se passa pela cabeça de um matuto desses. Matuto nada, dizia Fany, Seu João tem estudo. Ficou assim depois da morte da mulher, mas dizem que tem até diploma de doutor, doutor no estrangeiro. Diploma, sei.
Uma tarde recebi um recado escrito por Alzira. Finalmente iria me encontrar com o italianão. Peguei com São Judas Tadeu; que ele encaminhasse um bom término para o negócio. Eu precisava tanto e para o homem também haveria de ser bom. As terras já coladinhas às terras dele. Valei-me, meu santo das causas impossíveis. Voltei para Milagres. Mandei Seu Honório até Mato Cerrado dar o recado para o homem. Se ele não estivesse, que deixasse o bilhete com Corisco.
Me arrumei um pouco mais do que de costume.
Passei um perfume qualquer, só um pouco, bem pouco. Passei batom. Coloquei um vestido pouco usado. Estava quente e achei que ficaria mais bem apresentada. Afinal, eu iria fechar um negócio. Peguei o carro de Fany. Vou sozinha. É coisa entre mim e ele. Não precisa vir junto. Daqui a pouco estou de volta.
Corisco veio abrir a porteira e logo o Seu João apareceu na varanda. Tirou o chapéu, abriu o portãozinho e desceu as escadas. Ficou parado enquanto eu estacionava o carro embaixo dos hibiscos.
– Entra, Dona Heloísa, a casa é sua e o café já está até sendo servido.
Sinhana havia deixado a fazenda grande e viera para dar uma ajeitada em Mato Cerrado. Discreta, saiu para o terreiro com a desculpa de olhar umas quitandas assando no forno de barro. Dali deve ter sumido de vez, pois não a vi mais.
Conversamos o que tinha para ser conversado.
Ele anotando numa cadernetinha tudo que deveríamos fazer nos próximos dias: papelada, assinaturas, advogado, banco, cartório, essas coisas. Ao contrário do que eu esperava, demoramos muito mais tempo que o previsto e, nesse vai e vem na boleia com o Seu João, fomos nos tornando mais próximos. Confidenciando algumas lembranças de nossos passados. Alguns segredos. Algumas esperanças. Dia após dia, durante duas semanas, nos vimos todas as manhãs e todas as tardes. À noite, cada um em sua casa, mortos de cansaço. Foi naqueles dias tão cansativos que comecei a gostar de João.
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