A filha do feirante

Peter Rossi

 

Em uma das minhas incontáveis incursões em restaurantes ao redor do trabalho, na hora do almoço, me deparei com mais uma situação muito divertida.
Com o computador em frente ao rosto, estava revisando um livro a ser lançado em breve. De repente, ouvi uma voz extremamente fina, que chegava ao fundo dos ouvidos, como uma lança, a perfurar meu tímpano.
Levantei o rosto e percebi, algumas mesas à frente, quatro senhoras conversando. Dentre elas uma se sobressaía. Era a da voz esganiçada.
Fiquei atento e percebi que se tratava de amigas de muitos anos, animadas pelo reencontro, certamente depois de muito tempo, e embaladas por alguns chopes. Estavam, de fato, muito felizes. A alegria era contagiante, não fosse a tal voz de cegonha.
Não sei se cegonha fala, mas foi o primeiro animal que me veio à mente após ouvir aqueles pretensos gritos estridentes.
Acabei por interromper meu trabalho de revisão e, absorto, consegui ouvir o que falavam, até porque, a cada gole, o volume da conversa aumentava alguns decibéis.
A senhora “gritadeira” não tinha a menor noção do alvoroço que sua voz provocava. Por outro lado, as amigas, talvez já acostumadas àqueles chiados, também não se sentiam incomodadas. No fundo, no fundo, àquela altura, eu também não me sentia.
Em determinado momento, a cegonha se levantou e, num discurso profundamente emocionado, disse a todos no restaurante o quanto estava feliz em reencontrar velhas amigas. Era uma mulher bonita, dos seus cinquenta anos, cabelos grisalhos, bem cortados. Era elegante, preciso confessar. Mas ao pensar na sua voz, o castelo de areia era imediatamente consumido por uma onda espumante de realidade.
Após seu pequeno discurso, ainda de pé, um silêncio tomou conta do lugar. Numa fração de segundos puxei algumas palmas e todos os demais clientes aplaudiram.
Bom, agora posso voltar ao trabalho, pensei.
Que nada! Estimulada pelo apoio recebido, a senhora grisalha, já encharcada de chope, fez questão de aumentar o volume, a ponto de fazer tremer os vidros das janelas. Ela, simplesmente, não se dava conta.
Eu observava todos no entorno, com as próprias conversas interrompidas, inconformados com a sirene plenamente aberta.
João do Carmo, o garçom, veio até a minha mesa a me perguntar se estava bem servido, se precisava de alguma coisa. Respondi que queria um protetor auricular. Ele, rindo muito, me disse: – acho que a dona é filha de feirante! Já imaginou ela gritando: – Olha o tomate, olha o almeirão! Rimos muito, até demais!
Para não perder a viagem, com absoluto sarcasmo, perguntei ao João do Carmo sobre o marido da senhora.
– Será que é casada? Como o marido suporta?
Meu preconceito, é óbvio, me causou espanto. Falava com um amigo, reservadamente, me sentindo culpado.
O João do Carmo, na sua simplicidade, porém com muita sabedoria, decretou, logo após eu dizer que o marido devia ser profundamente apaixonado pela senhora grisalha:
– Apaixonado, não! Ele deve ser surdo mesmo!

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