O jogo de War

Essa é uma história muito antiga, mas vale a pena ser contada.
Quando criança, e lá se vão longos pares de anos, foi lançado um jogo de tabuleiro. Seu nome: War! O objetivo era justamente alcançar objetivos – conquistar territórios ou continentes e destruir seu melhor amigo, que naquele momento, era seu ferrenho adversário.
Sempre tive dúvidas se esse era um objetivo válido a ser perseguido – destruir o amigo, tanto assim que, por diversas vezes sugeri a exclusão dessas missões, limitando a partida apenas a alcance de continentes e territórios.
O jogo era relativamente simples em sua confecção: um tabuleiro que se dobrava em quatro, negro no verso e no anverso exibindo um mapa-mundi diferente daqueles que teimava em decorar das páginas do livro de geografia. O tabuleiro exibia ainda nomes de países que nunca tinha ouvido falar, e olha que eu era especialista em recitar os nomes dos países e suas capitais. Tinha imenso orgulho disso. Eu, o menino que sabia os nomes das capitais de todos os países do mundo …
Depois, a minha memória não mais me permitiu acompanhar as mudanças pelas quais passaram os países. Uns nasciam, outros morriam e tinha também aqueles que simplesmente trocavam a carteira de identidade. Eu heim!? Como é que pode um país mudar? Hoje tenho ciência da absurdeza que fazem com os países.
Mas era assim, em síntese o tabuleiro do jogo War.
Existiam, ainda, as cartas com os objetivos – salvo engano eram vinte e quatro. Isso sem falar nos exércitos – pequenas bolinhas divididas por cor; seis cores: branco, preto, azul, verde, amarelo e vermelho. Claro, ia me esquecendo dos dados – os verdadeiros canhões a disparar tiros nessa guerra maluca. A bem da verdade não eram bolinhas os exércitos, mas disquinhos, afinal eles deviam se equilibrar, pousados sobre cada território.
Pois bem, pedi à minha mãe um jogo desse no meu aniversário. Eu sempre fazia esses pedidos para minha mãe, pois meu pai cismava em se manter absolutamente surdo a esses reclames.
Ficou de olhar isso. Eu não sabia que o jogo custava tão caro. A semana do aniversário chegou e, ao invés do jogo, minha mãe chegou em casa com algumas folhas de um papel mais grosso, do tamanho da folha de cartolina, porém mais pesado, firme – era chamado papel cartão. Ela me fez o desafio: – meu filho você que conhece os nomes de todos os países do mundo e gosta tanto de desenhar, duvido que consiga colocar nesse papel cartão o mapa que vem impresso no tabuleiro do jogo de war – era assim que nos referíamos: não dizíamos jogo War, mas sim jogo de War. Particularmente, acho a segunda versão mais fidedigna …
Demorei uns dois dias, mas ressalvadas algumas manchas inevitáveis, resultado do apoio da mão sobre a tinta das canetinhas esferográficas, o mapa ficou pronto! E ficou bacana. Meio torto, é verdade, com os países dos seus extremos meio fora do contexto original – mesmo porque o papel cartão insistia em terminar justamente quando estava desenhando o Alasca ou Vladvostok.
Mas ficou bacana o meu mapa do tabuleiro do War. Deu até para fazer uma margem – pequenininha é verdade, mas que deu, deu. Naquela época, usar uma folha sem fazer margem era quase um sacrilégio.
Entreguei o trabalho e minha mãe sorriu, não achou nenhum defeito, por mínimo que fosse. Eu, de meu lado, fiquei com a certeza de que ela precisava de óculos. Só mais velho tomei consciência de que olho de mãe usa lente de paraíso – só enxerga coisa boa! Para as coisas ruins, as mães se valem de uma tal catarata, que quando menino nada mais significava para mim que cachoeira … e das grandes!
Ficou ali parada, olhando o tabuleiro e quando achei que tinha terminado minha missão, ela me entregou outra folha de papel cartão, essa branquinha, e me intimou a cortar vinte e quatro retângulos. Pra ajudar, me entregou o baralho de plástico da vovó e me deu a ideia de pegar uma carta pra servir de molde.
Essa tarefa, por mais incrível que pareça, foi mais árdua. Demorei séculos pra terminar e depois de destruir umas oito ou nove cartas do baralho da minha vó – que dias depois me custou um sabão daqueles – acabei entregando os vinte e quatro retângulos.
Minha mãe, então, pediu emprestado o jogo do filho da vizinha e anotou num bloco pautado, daqueles que a gente usava para escrever cartas – quando cartas ainda eram escritas, todas as missões do War. Me lembro bem da letra da minha mãe; tinha uma particularidade na letra “S”. Ela grafava qualquer palavra iniciada com s, no princípio da frase, apenas aumentando o tamanho da letra. Para ela, a letra s minúscula ou maiúscula só se divergia no tamanho – o desenho era o mesmo. Não tinha aprendido assim. Os cadernos de caligrafia me permitiam escrever a letra “s” maiúscula com um coque, como se tivesse prendido os cabelos prá ir a uma festa de gala. Ahh, isso é a mais pura verdade: as letras maiúsculas sempre estiveram melhor vestidas que as minúsculas. A única exceção era a letra “o” minúscula que, faça frio ou faça sol, sempre utilizava um elegante cachecol.
Bem, o fato é que copiei todos os desafios do War, um em cada um dos retângulos. Não saíram com erros de português – sempre fui aplicado ao escrever, mas confesso que algumas missões subiam morrinhos, enquanto outras quase que despencavam do papel. Mas só quem foi menino sabe bem a dificuldade de escrever uma frase num papel sem pauta. E falo mais, se alguém consegue fazer retinho é porque já nasceu adulto!
A essa altura percebi que não ia ganhar o jogo de presente. Tinha que me contentar com o genérico – expressão que nasceria na minha compreensão décadas depois.
A semana já estava no sábado e a minha mãe me convidou para ir ao armarinho. Eu adorava! Pilhas de papel e de outros materiais que a gente chamava simplesmente “material de escritório”. Hoje, na verdade, nem sei como é chamado. Para mim era e continua sendo material de escritório, e pronto! Podia ser usado em casa, mas era material de escritório …
O armarinho era uma bagunça só! Vendia de tudo: fita métrica – que vinham enroladinhas; caixinhas da sorte; caixas de lápis de cor. Tinha de 12, 24, 36 e até quarenta e oito lápis. Vendia borrachas – brancas ou uma da qual não gostava muito – metade azul e a outra metade grená. Tinha um jogo de agulhas que vinham espetadas num papel com a forma de uma cesta de costura. Vendia lantejoulas e até tecidos. O nome estampado na placa do armarinho dizia tudo: Armarinho Leão dos Tecidos! Ficava ao pé de uma ladeira com uma portinha pequena, estreita.
Ia quase me esquecendo de explicar: armarinho não era um lugar pequeno pra guardar roupas igualmente pequenas. O significado era outro: uma loja que vendia de tudo – coisas que eram necessárias comprar e outras que não serviam pra nada!
Pois bem, no armarinho, minha mãe comprou cinquenta botões de camisa brancos, cinquenta pretos, cinquenta azuis, cinquenta verdes e cinquenta vermelhos. Não comprou botões amarelos porque lá não tinha. A vendedora foi categórica: pra que alguém precisa de botões amarelos? A alternativa foi usar botões da cor cinza. Compramos, e eles serviram muito bem. Na verdade, mamãe comprou cinquenta botões pequenos e dez grandes de cada cor. Era botão que não acabava mais.
Voltamos pra casa e após incursão na gaveta de meu irmão mais velho, surrupiamos dois dos dados que vinham numa caixinha estreita onde existiam outros três, e que por fora estampava a propaganda de uma marca de pneus.
Mamãe juntou todo esse material e fez um embrulho com papel celofane, que era um papel meio plástico, de várias cores. Fez como uma trouxa e, juntando todas as pontas, amarrou com um laço de fita. No fim, ficava parecida com uma cesta de piquenique.
No dia seguinte deixou o presente ao lado de minha cama. Ao acordar me deparei com aquela trouxa e ao abrir o embrulho me dei conta de que ali estava o meu jogo de War.
Meio capenga, mas absolutamente original. E o mais interessante é que todos meus coleguinhas queriam brincar com o meu jogo, mesmo aqueles que tinham o War comprado na Brinquedolândia!
E foi um tal de jogar War, até enfarar.
Os anos se passaram e onde está esse jogo eu não faço a menor ideia. Não sei se alguém guardou ou se os botões foram se perdendo ao longo do tempo até que um exército ficasse em minoria, não sei. Sucumbiram os exércitos à guerra da vida, hoje tenho certeza.
Essa é uma história singela, simples, boba até! Mas de quando em vez ela vem à minha cabeça, empurrada pela memória. O sentimento que me invade nessas ocasiões é de uma felicidade intensa. Não porque jogar War era a melhor das brincadeiras, mas porque tenho hoje a nítida e insofismável certeza de que ter criado o meu próprio War foi a melhor brincadeira que minha mãe me proporcionou…

Um comentário sobre “O jogo de War

  1. Ótima essa história! Você poderia escrever um texto sobre a aparência das letras do alfabeto, cada uma lembrando um afeto ou uma história.

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