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Inércia boa

Peter Rossi

É incrível como temos o poder de mudar as coisas e não o exercemos. No dia a dia enfrentamos o motorista que nos dá uma fechada e ainda nos manda prá aquele lugar, com um gesto obsceno e, ainda assim, nosso coração acelera. A vontade é de descer do carro e xingar com toda a força de nossos pulmões. Vivi isso hoje, na hora do almoço. Cheguei a abrir o vidro do carro, mas o outro acelerou, não tive a oportunidade. Ainda bem.

Bastaram alguns poucos segundos para que a respiração voltasse ao normal e os neurônios, em franca comunicação, me dissessem que nada tinha acontecido. Não houve qualquer colisão. O motorista do outro carro nunca vi mais gordo ou mais magro e a vida seguiu como tinha que seguir. Entrei no estacionamento do Shopping, cheguei ao restaurante e fui pro meu almoço de negócios que, aliás, foi bem proveitoso.

Esse é um exemplo claro: eu não precisava me alterar, nada mudaria, a não ser a minha pressão sanguínea.

Ao longo da vida, são várias essas ocasiões. E descuidamos da nossa capacidade de não vivê-las, de sair do cinema antes que a cena fatal aconteça. Temos esse discernimento, mas nem sempre o exercemos.

O sábio, dizem os próprios sábios, é aquele que escuta. Se é assim, devemos estar mais atentos também ao não escutar. Às vezes, ouvir é desprezar o que chega aos nossos ouvidos. Essa clarividência nem sempre nos alcança.

E o pior de tudo é que essas coisas acontecem diariamente, nas mais diversas oportunidades. Precisamos sintonizar nossos ouvidos para que não se rendam a tais descompassos. As coisas não vão mudar, essa é a mais pura verdade.

Entre um grito, um tapa no volante e um buzinaço, existem as árvores ao longo do caminho e o melhor que fazemos é permitir aos nossos olhos, como faróis da nossa alma, observar os pássaros que ainda existem, a cantar, pousados naqueles galhos.

São minutos mágicos que não devem ser desperdiçados. Ignoremos os lampejos e partamos para a sábia inércia. É ela que nos faz melhores, de corpo e de espírito. Melhor mesmo que antecipemos ao evento e, assim, jamais seremos pegos de surpresa e, atentos, não sofreremos tanto. Estaremos à mercê do que ocorrerá, porém com o olhar fixo para adotar a melhor estratégia.

O trânsito, nosso algoz, foi desenhado por nós mesmos. É fruto da nossa aguçada e inevitável urgência. E o consumismo só cuidou de catalisar a situação. Um dia chegaremos ao número de veículos suplantar o de pessoas, como acontece com os celulares. Nada mais questionável.

Voltando pro escritório, me impus um exercício interessante: dirigir com cuidado, porém sempre pensando no próximo veículo. O que fizesse ele não me influenciaria. Se parou de repente, olho ao redor, dou seta e desvio. Se me ultrapassou de forma desmedida, piso no freio e o deixo seguir, aonde quer que ele vá. Fico atento a mim mesmo, ouvindo a boa música a tocar. Vidros fechados, ar-condicionado bem confortável. Os barulhos do trânsito não me alcançam e, quando sou obrigado a uma parada no sinal, procuro achar uma árvore e nela, tentar encontrar os mesmos pássaros. Eles estarão cantando, com certeza. Melhor assim, muito melhor.

 

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