Minha cidade

Peter Rossi

Toda essa crise me fez desistir de qualquer meio de locomoção. Embora cansado, resolvi andar a pé pelo centro da cidade, da minha cidade, que nunca minha foi.

Não brotei nessas serras, mas aqui me acolhi e deixei minha vida se derramar. Brinquei de menino, corri pelas suas praças e homem me fiz.

Caminhei por quarteirões que não revia há muitos anos. As pessoas apressadas pouco se importavam com o que viam. Eu não! Caminhei atento a cada pedacinho de imagem.

Algumas esquinas não eram mais as mesmas. O que esperava ver já passou! Portas não mais existiam. Pilastras, postes, onde estão? Se foram, esconderam nas dobras do ontem.

Interessante como a cidade muda, como nossos olhos mudam e, juntas, essas mudanças refletem tanta saudade de um tempo bom.

Mas falava das mudanças da saudade. Fato inexorável. As janelas que antes existiam aqui hoje não se abrem mais. As ruas serpenteiam entre construções desconexas, porém de mãos dadas umas com as outras. Alguns prédios se apoiam em ombros alheios, ombros de prédios outros. Mas a cidade é tão linda! Continua linda a minha cidade. O que muda são meus olhos. Ou não?

Antes de vestido longo, agora com um pretinho básico. Minha cidade está sempre vestida para festa!

Continuo andando, perplexo, embasbacado. Olhos atentos, ouvidos surdos. Ali eram somente a cidade e eu, mais ninguém…

A loja preferida já não existe mais. E o estacionamento? Onde parar o carro? Os cinemas, que saudade … quantos beijos de amor roubados na solidão das poltronas vermelhas, na penumbra da adolescência.

A cidade hoje não tem mais varandas. Não existem mais toalhas estendidas. Mas tem espelhos, muitos espelhos. Metais reluzentes que trazem pedaços do sol em cada canto. A cidade brilha como se seu céu fosse só purpurina. É uma cidade na puberdade, cidade sem idade, cidade sempre menina.

Como eu te amo, minha cidade. A ponto de me perder em você, em todas as suas curvas, seus deslizes, em múltiplos matizes. Cidade que procurei e sempre me acarinhou. Que sofreu comigo, curou minhas ressacas, lavou as casacas, que deixou pendurada no céu a mais linda das luas, nos tempos em que tanto sofri por amor.

Minha cidade hoje é outra, mas ainda é toda. Ruas mudaram de nome, sombras no chão seguiram rumos diversos. Minha cidade que tanto cantei em verso, entre copos de cerveja e braços de violão. Cidade com a qual amanheci abraçado, sentado na calçada esperando o sonho chegar.

Minha cidade hoje tem múltiplas cores. São vermelhos, azuis verdes e amarelos intensos. Seu tapete de asfalto ainda se derrama entre subidas e descidas, acompanhando o corpo longilíneo das suas serras. Minha cidade é eterna, apesar de tanto mudar. Paradoxo intenso.

Continuo caminhando, chegando em todo, em qualquer lugar. Que lembranças boas. Praça da Estação antes inundada de lágrimas, olhos pendurados no vigésimo terceiro andar. Ruas dos índios, todas. Ruas das madrugadas, das festas, ruas do mar, no meio da floresta…

Percebo que ainda existem alguns prédios que insistem em me lembrar de sonhos, tropeços, passos bêbados. Quanta saudade da minha cidade … Intensa cidade.

Minha cidade, antes uma velha senhora é hoje uma menina sorridente. Ela cruzou o tempo e me mostra que o novo cai bem, que o novo sempre está aí, sempre vem.

Os ventos da cidade, no final da tarde, assoviam canções de amor em meu ouvido. Vento que desliza por entre paredes e muros e envolve meu rosto. Que beijo bom o beijo da minha cidade. A cidade pisca prá mim e convida pra abraçar a noite que chega. A tarde se despede numa cor laranja de doer e traz lembranças e músicas que tanto cantei, simplesmente prá adorar o cair da tarde. Reflete o brilho nas vitrines, hoje tão poucas, antes tantas, abertas como um sorriso.

Procuro entender onde estou. Caminhei sem rumo definido, no centro da minha cidade. À essa altura a cortina da noite fechou o palco do dia. Minha cidade, minha cúmplice de tantos beijos roubados. Cidade mãe, cidade irmã. Minha eterna namorada essa cidade que guardou meus sonhos em suas calçadas.

Minha cidade mudou tanto, mas ainda está linda. Andar pela cidade é um ato de encontro. Me dou conta que em todo esse tempo meu coração batia forte, embora descompensado. Minha vontade incontida era de correr pros seus braços e me deixar ficar. Foi quando entendi que, na verdade, tive com minha cidade, nessa noite e tarde, um encontro de amor.

Minha cidade mudou tanto, a cidade que tanto é minha, mas que nunca foi … A cidade que traz guardada, em suas esquinas, a saudade complacente, de um moço sempre adolescente, de um tempo que embora às vezes moldado em tijolos e concreto, pulsa de paixão. Ah, a minha saudade, minha cidade, meu todo amor.

Múltiplos horizontes, olhar único. A minha cidade se deita solta sobre as serras, abre os braços, estende as pernas e sorri apaixonada pela lua. Abre seus olhos de lagoa e me impõe um sorriso.

Minha cidade mudou muito, mas ainda é a mesma, e cansada boceja, me convidando a consigo dormir.

Me dou conta que voltei, à essa altura, ao começo. Guardei todas essas lembranças com as mãos e acenei para o primeiro táxi, estava exausto. Caminhar de braços dados com a saudade é bom, mas me cansei, afinal acabei por recolher um pedacinho de mim em cada canto da cidade.

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