O abecedário

Peter Rossi

Essa história ouvi da boca do Olavo Romano. Grande escritor e contador de histórias. Nos encontramos com certa frequência, nos eventos literários de nossa profissão. Nunca escondi minha admiração e respeito por ele e sua escrita. No livro “Desenhos do Tempo” me senti motivado a escrever uma crônica comentando um livro seu, “A Cidade Submersa”.

Pois bem, estávamos de conversa à toa, sob um sol escaldante, sem nenhuma cerveja por perto. Em pé, mas agradavelmente desempenhando os respectivos papeis: ele de peripatético e eu de ouvinte boquiaberto.

A coisa foi mais ou menos assim.

Nhoca era uma mulher sacudida, como diziam antigamente. Queriam se referir a uma pessoa forte e pronta ao trabalho. Era mesmo assim. Interessada por tudo e todos! Sabia cozinhar como poucos e costurar como quase ninguém.

Além disso, era doceira especial. Fazia Maria-mole como ninguém e também balas de alcaçuz. 

Não conheci Nhoca pessoalmente, mas posso lhes dizer que era minha amiga íntima, tamanha a admiração.

À noite, ficava à espreita das ondas do rádio, estacionado ao lado do fogão de lenha. O calor do fogo já transformava os botões do aparelho em figuras bizarras, mas ele ainda funcionava, e bem. Nhoca aproximava a orelha, prestando atenção nas notícias. E era a primeira a espalhar.

– Dona Anna, a senhora viu que o moço da novela morreu? Coitado, tão bonito. Gente bonita assim devia viver pra sempre, só pra gente não cansar de olhar.

– Ora Nhoca, todos nós vamos um dia, sejamos bonitos ou não.

– Dona Anna, todos são bonitos, todos mesmo. Alguns são mais bonitos que os outros, só isso.

Acabava o “jornal” e lá ia Nhoca para o tanque, a lavar roupas. Com todo cuidado esfregava uma a uma, e estendia no varal de arame, amarrado entre uma árvore e outra.

A vida nos oferece varais a todo tempo, basta que exerçamos nossa sensibilidade a imaginar onde poderemos por a quarar nossos lampejos de felicidade. Não nos damos conta de tais oportunidades e ao invés de procurar o melhor ângulo do sol, nos quedamos a imaginar uma tempestade daquelas.

Nhoca não era assim. Faça chuva ou não, todos os dias, para ela, eram ensolarados.

Tinha só uma tristeza na vida, a moça. Ela não sabia ler! Fica tentando imaginar as curvas de cada palavra, os rabiscos, os desenhos, mas não conseguia ler.

Certa vez a Prefeitura da cidade divulgou que seria inaugurada uma escola destinada a alfabetização de adultos. Dona Anna, sabedora da aflição de Nhoca correu e foi uma das primeiras a matricular sua empregada.

Nhoca tinha sede de conhecer todas as coisas, como elas funcionam e como não funcionam também. Tinha consigo uma sensibilidade extrema e, na maioria das vezes, encontrava as respostas que buscava, mas bem sabia Dona Anna que sabendo ler, os voos de Nhoca seriam infindáveis, ela cobriria todo o céu de sua imaginação.

Comprou caderno comum, de caligrafia, lápis e borracha. Mandou embrulhar com papel colorido e entregou a Nhoca.

– Pronto, agora você vai aprender a ler Nhoca! Aqui está todo o material que precisa, o resto você já tem, já traz dentro do coração.

Nhoca não se continha de felicidade. Seus olhos teimavam em derramar um choro feliz. Ela chorou, dona Anna chorou também.

Chegou o grande dia. Numa segunda-feira começava a aula. Nhoca foi a primeira a chegar e sem se preocupar com nada mais, sentou-se na primeira cadeira. Orgulhosa, abriu a sacola e de dentro tirou o caderno, o lápis e a borracha. Olhou para aquele pedaço de goma branca a pensar o quanto a usaria. Sabia bem que iria desmanchar inúmeros erros, mas não se daria por vencida. No final, ainda que bem no final, deixaria a borracha de lado. Não seria preciso mais esfregar tantas vezes o papel.

A professora chegou. Irma era o seu nome. Irma? Seria uma corruptela da palavra irmã? O que oficial do cartório de registro quis dizer? As professoras eram tias, não irmãs … enfim!

– Boa noite a todos! Me chamo Irma, professora Irma. Estamos aqui reunidos para alcançar, juntos, a maior das felicidades, a alfabetização! Não existe nada mais importante no mundo do que saber ler e escrever. Dentro de pouco tempo vocês terão a consciência disso.

Nhoca, com poucos modos, interrompeu a professora.

– Eu tenho a consciência, “fessora”, só não consigo entender as letras. Bastou para que todos os demais alunos irrompessem numa risada daquelas de alarde.

– Eu sei, querida. Qual o seu nome?

– Me chamo Eudóxia! Nome complicado né? Perguntei a minha mãe de onde ela tirou, mas ela não se lembrava. Pode me chamar de Nhoca.

– Nhoca, daqui um tempo você vai se sentir muito mais feliz, quando ver as letras juntinhas, guardadinhas umas atrás das outras, e saberá que elas estão cantando pra você, acenando, a demonstrar o que querem dizer.

– Tomara, professora, tomara! Rezei muito pra Santa Bárbara. Falei prá ela que escutar eu já sei, falar também, mais ou menos né? Se não der conta, não preciso saber escrever, só de aprender a ler já vai ser melhor do que a encomenda.

– Uma coisa leva à outra Nhoca, você vai saber disso logo, logo.

A professora tirou da sacola que tinha deixado em cima da mesa uma série de letras de papelão e foi ordenando, uma a uma, presas por barbante esticado em frente ao quadro-negro. Primeiro colocou a letra “A”, em seguida a “B” e assim por diante. 

Após esticar todas as letras, dependuradas no barbante, uma mais colorida que a outra, D. Irma explicou que aquele era o alfabeto.

Nhoca ouvia e via tudo aquilo com tamanho êxtase que mal conseguia ficar na cadeira.

A aula terminou e Nhoca cuidou de ir pra casa. Dona Anna trançava agulhas de tricô a esperar pela moça. Não demorou muito, afinal a cidade era pequena e apenas uma praça as separava.

– E então Nhoca, gostou da aula?

A moça, com o peito ainda arfando de tanta felicidade, foi logo dizendo:

– Como gostei, Dona Anna, como gostei! Agora, além de falar e escutar, eu vou aprender a ler.

– E a escrever, Nhoca, e a escrever.

– E sabe o que mais, dona Anna, hoje eu consegui entender que as palavras, as palavras, elas são fabricadas pelo abecedário!

Dona Anna não conseguiu esconder a emoção, e levou aos olhos a peça que tricotava. Só teve tempo de desejar boa noite a Nhoca, mesmo sabendo que, naquele dia, Nhoca demoraria muito pra dormir…

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