Raniere Sabará
Talvez hoje seja um bom dia para lhe escrever. Lhe escrevo, pois, eu sou. Cotidiano em paradoxo. Me movimento, reviro, faço e cirando com a vida. Sou o acaso do derradeiro em água rasa. Cirandei tanto com o acaso que ele decidiu me encontrar.
Naquele sábado à tarde, o tempo escureceu. Sento-me no sofá. Dou de cara com a face desalmada de mim. O único pedacinho de caco que jurei não tocar, sabendo que se o tocasse seria encontrar um curativo inacabado. Me tornei, naquela sala, o espantalho vagando na batelada ao vê-la diatópica em minha presença. Não poderíamos evitar o inevitável.
Seus olhos dilatavam como arabaianas. Relembrar a violação do que é sagrado para si lhe atormentava como lembranças, (Re)lembranças daquela madrugada. Para mim, a não reação dizia mais com o corpo do que palavras. Não havia de ter palavras para negociar o inegociável. Naquela roda, estavam ali: Mulheres tão pertencentes de si quanto uma semente germinada no cocar. Conversavam sobre o ato de relutar. Resistir. Ser e presenciar a emancipação. Já para o nosso encontro, pelo acaso, só havia falta de sentido, embora a vivacidade fosse perceptível aos olhos de qualquer outra que nos olhasse.
Estávamos a milimétricos passos de distância. O meu espirito saia pela boca. Meu corpo se tremia como corais em mar vermelho. Como um rato, roía até mesmo a ponta da caneta pincelada no azul que, logo após, haveríamos de dar risada pelo o ocorrido. Eu não estava preparada para a arte do encontro que se deu pelos meus desencontros pela vida.
Ironicamente, o dia coincidia com aquele mesmo sábado de um passado distante que marcava o limite da nossa demarcação. Não poderia ter sido diferente. Digo, a sorte, seja pelo acaso ou pela aventura do viver, sempre me encontra. Ao sentarmos de frente, a força do medo que tínhamos, não nos tapou o ouvido e a boca: “Tudo poderia ter sido diferente”, com a voz embargada me disse. No seu silêncio, ao me escutar como sempre fez, me lembro o ponto de partida do que hoje sou. No âmago, ao me dizer querer bem, me lembro de reconhecer aquilo que um dia fui. No seu perdão, lavo minha alma e a deixo ir com todas as incertezas que apregoaram nosso processo de mudança.
Pelas dolorosas lágrimas, abraço e acolho a sua criança que se feriu nessa embarcação em tempestade. Admito e não acoberto meus pecados. Não havia de ter território que nos reencontrasse que não fosse o mesmo espaço que nos desencontrou.
Então, ao selar nosso perdão pelo abraço, seu sorriso me elucida da importância do peso de se carregar durante todos esses anos a minha bagagem da culpa. Nossos pés se firmaram em chão e abrimos mão dessa culpa que durante anos se formou em solidão. Medo. E pelo nosso afeto que, ainda há de existir, nos lembramos ao final de que o passado sempre será uma roupa que não nos serve mais, embora tenhamos partido.