O livro de receitas

Peter Rossi

Dona Sinhá é mulher brava, daquelas que não leva desaforo pra casa, mas jamais aumentava o tom de voz. Enérgica e doce, a vida lhe tralhou assim. Acostumada a noites de frio intenso, preocupava-se com cada pedaço da coberta. Adorava ver as estrelas, conversar com elas, trocar um dedo de prosa, como se diz.

Fico a imaginar Dona Sinhá repisando o dia com as estrelas: Hoje foi difícil, tinha pouca comida pros meninos. Minha perna doía demais e o avental era pequeno pra tanta tristeza a enxugar. As estrelas, por sua vez, respondiam tudo aquilo num idioma que só ela, Dona Sinhá, entendia. Embalavam o seu sono e pela janela aberta pra noite, acalentavam aquela alma boa.

Ficara viúva ainda jovem e os filhos, amargurados pela ausência do pai, deram de debandar pela vida, só dois ficaram com ela. Os menores; Tonha e Bené. Benedito, como o pai, era a rapa do tacho, o menino temporão, seis anos mais jovem que Tonha. Teve na irmã uma segunda mãe. Eram amantes dos mesmos gostos, se entendiam em tudo, inseparáveis. Se entendiam só de olhar, como Dona Sinhá e as estrelas.

A vida na casinha de barro era assim, abraçada pelos dias intermináveis em que tardes cor de laranja madura forravam o céu para um gesto contumaz: Dona Sinhá na escada da cozinha, pés no terreiro, com os meninos no colo. Ali ela contava histórias da sua vida, dava conselhos e vez ou outra deixava pingar uma lágrima de saudade ou de aflição.

Ao lado da casa, um pé de figo fazia moldura, ladeado por dois pequenos canteiros de rosas. Dona Sinhá fazia maravilhas com os figos: geleias, bolos, doce em calda. A vizinhança toda, na época da temporada, corria a lhe pedir os quitutes, que eram entregues em troca de poucas moedas.

Além de grande mulher, Dona Sinhá era uma excelente cozinheira. Com poucas panelas que cuidava de arear diariamente a tampar duas bocas do fogão de lenha, fazia surgir iguarias maravilhosas e, com elas, vizinhos, amigos e parentes com água na boca.

Tonha era da Igreja, não gostava de panelas e temperos. Beata, passava todo o tempo disponível a cuidar das coisas da Igreja. Dizia que deveria ter sido freira. Dona Sinhá bem sabia que não. Deus já tinha muitos ajudantes, ela, ao contrário, só tinha Tonha como filha mulher ao seu lado.

Quem despertava o interesse pela comida era Bené e de tanto prestar atenção na mãe ao lado do fogão a lenha, tomou gosto pela coisa e deu de ser um cozinheiro muito prendado.

Foi pra cidade grande e se matriculou num curso. Logo, de aluno passou a professor. Todos admirados pelo talento do rapaz e pelo tempero especial que ele usava. Não usava coisas diferentes, apenas fazia com gosto e carinho. Ao redor das panelas sempre se lembrava da velha mãe.

Não demorou a arrumar um emprego de chefe de cozinha num restaurante famoso da Capital. Ganhou dinheiro e fama, mas não esqueceu da roça. Sempre que sobrava um tempo lá estava com a cabeça no colo da mãe, na escada da cozinha, a relembrar velhos tempos e novas receitas.

Interessado em criar novos pratos, pediu a mãe que escrevesse pra ele as receitas das quais ela mais gostava. Comprou um lindo caderno, uma caixa de lápis e uma borracha. Fez questão de escolher um com uma rosa na capa. Se lembrava bem dos canteiros de sua infância. Entregou tudo à mãe e pediu que ela anotasse, no mês seguinte viria buscar. E mais, ia provar as receitas e até levar Dona Sinhá para a capital, para jantar no restaurante em que trabalhava, para provar um dos pratos.

O tempo passou e nada do caderno.

– Meu filho, meu reumatismo está me matando. Mais uns dias só e eu termino.

– Deixa eu ver mãe?

– Não Bené, só vou entregar o caderno quando estiver todo preenchidinho. E outra coisa, me traz também uma caixa de lápis de cor.

– Pra quê, mãe? Eu vou passar as receitas pro computador, não precisa bordar a letra nem colorir. É só escrever de um jeito que eu entenda, nada mais.

– Filho, não me dê desgosto, faça do jeito que estou te pedindo.

Beirava o Natal quando Bené voltou pra passar o final do ano com Dona Sinhá e Tonha. Em cima da mesa um embrulho em papel celofane, com um laço de fita amarrado.

– O que é isso? Presente de Natal?

– É prá você, Bené, disse Tonha, correndo pra cozinha a abraçar o irmão.

– Que saudade!

– Eu também mana. E a mãe, onde está?

– Ela hoje cismou de ir na Igreja. Você era pequeno e não se lembra, mas faz vinte anos que o pai morreu. Ela falou que ia rezar pra ele.

– Mas nem pense em abrir o presente, ela disse que faz questão de entregar em mãos. EU já vi, é lindo!

Bené não se continha de curiosidade, mas aceitou a espera. Foi tirar um cochilo com o cheiro do mato a desenhar pelo quarto.

A noite acontecia quando Dona Sinhá abriu a porteira.

– Olha, quem é viva sempre aparece! Até que enfim mãe. Não rezou uma reza, rezou uma missa inteira, reclamou Tonha. Logo ela que tinha tanto apreço pelas orações.

– Filha, fiz o que meu coração pedia.

– E Bené, chegou?

– Oi mãe, cheguei sim, respondeu um Bené com a cara amassada pelo travesseiro, dando um abraço na mãe.

– Vamos tomar um café? Perguntou Dona Sinhá.

Todos sentados em volta da pequena mesa e o embrulho no centro. Dona Sinhá deu uma respirada funda e entregou o presente ao filho. Estava ofegante.

Bené tomou o presente nas mãos e cuidou de abrir o embrulho de maneira atabalhoada, estragando o laço de fita. Surgiu então o caderno com uma rosa na capa. Ele cuidou de abrir e, para sua surpresa, viu um monte de desenhos.

– Os nomes das receitas foi sua irmã quem colocou prá mim, com sua letra linda.

Logo abaixo, só desenhos e mais desenhos. Bené, a princípio, nada entendeu. Fez menção de perguntar, mas o severo olhar de Tonha lhe trouxe à realidade.

– Olha com atenção, mano!

Bené então, observou cada um dos desenhos e enfim percebeu. Eram várias colheres, rabiscos de pacotes e frutas. Todas as receitas foram desenhadas, uma a uma.

Com o coração acelerado ele se levantou e com o livro junto ao peito foi para o terreiro. Sentia uma dor tão profunda, mas tão profunda que tinha medo do peito arrebentar que nem represa em dia de tempestade. Não era dor sofrida, era dor de alegria, de orgulho.

Abriu novamente o livro e não conteve o choro! A cada página, uma receita mais linda que a outra, tudo colorido com muito esmero.

Olhou para o céu a agradecer um presente tão lindo.

Bené saiu ainda jovem de casa, não se lembrava que a mãe era analfabeta. Aquele foi o único jeito que Dona Sinhá conseguiu escrever o livro de receitas.

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