Peter Rossi
Sentei pra comer uma feijoada. Antes pedi uma cerveja, foram duas! O sol, ainda que encoberto por um indefectível toldo de plástico, era aconchegante. Veio uma porção de torresmos, afinal tinha que ter alguma coisa pra beliscar. Mas não queria almoçar ainda. Depois do almoço a cerveja não desce mais. Sozinho fiquei curtindo aquele entorpecer de 4.5% de teor alcoólico. Não tinha o que fazer. Deixara o carro no Lava-Jato ao lado do restaurante e só me restava esperar. Estava, devo confessar, com a porção de torresmos diante de mim e meti a mão. Aquele sabor salgado invadiu a minha alma.
As pessoas passavam à minha frente pisando pesado sobre as tábuas, que insistiam em ricochetear, como a reclamar de tanta falta de cuidado. O tempo passava e eu ainda ali olhando a vida no início do fim da tarde, entorpecida a imagem pelo plástico que a sobrepunha.
Não ter no que pensar é às vezes uma sensação invejável. A gente fica pensando que não tem nada prá pensar, simples assim. Abre uma gaveta ali, olha atrás de uma porta acolá e não vem nenhum assunto. Não pensar pensando em não pensar. Incrível!
Olho ao lado e vejo uma gata e seu filhote. Despojados como só eles são. O garçom me chama pelo nome e me dou conta que tenho vindo muito aqui. Mas o que importa? Esse rótulo é mesmo relevante? Penso que não. Em mim não gruda! Sou o que sou e adoro, de verdade. Se pudesse mudar queria não ser careca. O resto? Tiro de letra.
Mas falava dos gatos. A mãe e o filhote, ambos lindos, iguais, gêmeos eu diria se não fossem de gerações diferentes. Um pelo multiforme: branco, preto, cinza e laranja. Obra surrealista da natureza, como tantas outras! Não fosse pelo tempo de vida, teria certeza que algum mestre do surrealismo cuidou de incrementar seus pelos.
Mas a natureza é assim mesmo. Com múltiplos olhares e pinceis, cuida de lançar contornos inimagináveis e a fazer de uma profusão de tons verdadeiras obras-primas.
Os gatos, como pombos, pousaram ao lado da minha mesa. Estavam famintos, eu pensei. Peguei os torresmos e entreguei aos bichanos. Eles se fartaram! E não se fizeram de rogados, comeram tudo!
Que venha outra porção. Eu e meus amigos ainda estamos com fome. Dessa vez uma carne cozida, com certeza os gatos iriam preferir.
Veio antes uma outra garrafa de cerveja e eu tentei pegar no colo os bichos que de pronto recursaram. Cada um pulou para uma direção e eu me vi sozinho ali. Mas não me preocupei, sabia que tão logo viesse a carne, com ela viria o odor e com ele os meus amigos gatos.
Não deu outra!
Para ficar mais perto dos animais e como estava vazio o restaurante àquela altura, pedi permissão para me sentar no chão. Assim ficamos os três, bem próximos, a degustar um prato de carne cozida.
Eu molhava o pão naquele molho maravilhoso e sorvia com prazer imenso. Os gatos queriam apenas a carne.
Ficamos olhando uns para os outros, todos a mastigar. Já havia uma certa intimidade, pensei eu e, tão logo o prato ficou vazio, estendi a mão para tocar na mãe gata. Foi um breve aceno, infelizmente, eriçando o pelo, a bichana correu alguns metros e ficou a me olhar de longe, sem entender qual necessidade tinha eu de estar tão perto.
Já tínhamos degustado a melhor comida, com confiança um no outro, pois todos comemos o tanto desejado.
Eu não devia ter estragado tudo com a ansiedade de tocar na gata, ela devia estar pensando. Uma coisa é dividir a comida, outra é tentar sempre o toque.
Esses humanos são muito esquisitos!
E pelo olhar da mãe gata eu compreendi exatamente o que ela quis me dizer, bastava o que vivemos até então. O que viesse depois, viria, a seu tempo.
Àquela altura, já satisfeito, recusei a feijoada, para surpresa do garçom.
Os humanos são mesmo muito esquisitos, pensei.
Levantei da mesa, dei uma olhada na tarde e paguei a conta. Procurando ao redor, percebi que os gatos não estavam mais ali.