Quando prezamos demais as nossas frágeis identidades, criamos ressalvas para tudo o que não deve ser ressalvado. Enchemos a vida de conjunções adversativas e nos sufocamos dentro de nossas minúsculas bolhas. Encolhidos, empobrecemos a riquíssima experiência de estarmos vivos para tudo o que existe. “Ela não faz parte dos artistas que admiro, mas…”, “Nunca tinha ouvido falar dessa moça, porém…”, “Fiquei muito triste com esse acidente, embora nunca tivesse ouvido suas músicas porque realmente tenho horror a esse estilo musical”. Na sexta-feira, impactada pela morte trágica de uma jovem artista que arrebanhava multidões para os seus shows, li dezenas – talvez centenas – de variações sobre as frases acima em comentários de amigos e conhecidos no Facebook. Todos interessados em manifestar sua consternação sobre a tragédia – é impressionante como nos sentimos instados a falar sobre qualquer coisa, ainda que ela não nos toque – e, ao mesmo tempo, ressalvar que jamais se igualariam às massas que de fato choravam a morte da “rainha da sofrência”.
Embora pareça que sim, eu realmente não decidi escrever este texto para julgar as atitudes de quem agiu assim. Já agi muitas vezes da mesma maneira, em situações diferentes, e é possível que você também. Minha intenção não é apontar o dedo para os outros. Eu realmente não vim aqui para isso. Meu desejo é apenas o de refletir sobre o motivo de nos preocuparmos tanto em sustentar esses personagens que criamos, mesmo que essa sustentação nos solicite tanta energia e nos devolva tão pouca espontaneidade.
Centenas de milhares de pessoas sofreram a morte da artista, que partiu tão jovem e de maneira tão brusca, deixando uma criança de menos de 2 anos. Outros, no entanto, se comoveram mais com a partida do pianista Nelson Freire porque talvez acompanhassem a sua carreira mais de perto. Mas não vi ninguém escrevendo posts sobre a morte do pianista com a ressalva de que não conhecia a sua obra, ou se justificando com a observação de que não era muito dado a escutar solos de piano nas noites de sexta-feira.
A identidade que a gente se esforça para sustentar tem que ter um quê de erudição – a depender da bolha em que nos sentimos acolhidos –, de riqueza material, de branquitude ou de machismo. Nós realmente nos convencemos de que não sobreviveremos sem isso. Até aos filhos que criamos queremos impor as identidades de crianças dignas de frequentar as bolhas às quais pertencemos: devem ser fãs de Led Zeppelin, leitores de clássicos ou, talvez, esplêndidos jogadores de futebol.
E estaria tudo bem com isso se a sustentação dessas identidades tão frágeis não nos trouxesse tanta dor. Porque um dia uma jovem cantora morre e eu me comovo, mas preciso explicar aos meus pares que não admiro aquele tipo de música. Ou acabo descobrindo que a minha filha sabe de cor cada uma das canções dessa cantora e me sinto impelida a buscar explicações convincentes para que isso não manche a minha reputação de mãe roqueira. Seria tão mais fácil apenas me juntar à grande massa humana que sofre por uma tragédia e chorar junto de todos, sem os muros das bolhas, não é? Ou simplesmente não me manifestar se aquela é uma dor que não me toca. A vida seria tão mais simples.
*imagem: UAI/EM
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Muito oportuno seu artigo. Parabéns!