Sempre brincávamos as quatro juntas: Fádwa era mais velha, tinha onze anos. Layla e eu, dez anos e a caçula e mais atrevida, mandona e autoritária, tinha nove anos, mas parecia ser nossa mãe. Yasmin era uma chata. Mas era bom brincarmos juntas. Às vezes saía uma briga: eu ia pra minha casa, as irmãs pra casa delas até que uma de nós se dispusesse a retomar a conversa ou a brincadeira; o que nunca demorava muito tempo.
Depois de feito o “Para Casa”, nos era permitido brincar na rua. Quase não havia movimento de carros. Poucas pessoas passavam por ali. O espaço ficava por nossa conta e nele tínhamos o nosso play ground particular. Tequinha obedecia minha mãe, dando uma olhada de vez em quando pra ver se tudo estava normal com as meninas.
Naquela tarde não havia sol. O tempo estava fechado, nublado, mas mesmo assim o calor era insuportável. Dava preguiça de correr; um desânimo, um corpo mole, uma canseira só. Por isto, nos sentamos no meio fio, enquanto programávamos nossa ida ao clube na tarde seguinte, uma tarde inteira na piscina.
Ali, na rua onde morávamos, uma de nossas vizinhas alugava o pequeno espaço ao lado da sua casa, um sobrado de dois andares. Era como se fosse um porão. A gente não sabia muito bem como era aquela casinha que avistávamos da rua, mas lá morava um músico importante, integrante da Banda de Música Euterpe Santa Joana, que tocava em todas as festas da cidade.
Foi Yasmin quem nos chamou a atenção. – Escutem, tem uma música tocando. E era verdade. Era no porão, colado à casa da dona Fiota, onde morava o professor Josias. Ele tocava um saxofone e eu era a única ali a não gostar daquele som. Como já frequentava aulas de acordeón, eu preferia o barulhinho bão da sanfona ou então, do violão que meu pai tocava enquanto minha mãe cantava.
Ficamos de pé tentando ver a imagem inteira. Continuamos a conversar enquanto olhávamos o músico, lá dentro do quarto, visto da rua, sem muitos detalhes.
– O que é aquilo? Yasmin perguntou.
– Aquilo o quê? Fádwa respondeu
– Aquilo que o homem tá fazendo…
– Uai, ele tá mexendo na calça. Vai fazer o quê?
– Não sei…
– Nem eu sei….
– Eu, hein…
Ficamos as quatro olhando… O músico deixou de lado o saxofone, colocou-o sobre uma mesa que aparecia no canto da porta. Ficou de frente pra nós, colocando-se mais ao fundo do quarto. Tirou o cinto. Desabotoou a calça e abriu um por um os botões da vestimenta azul marinho.
Continuamos caladas, esperando os próximos acontecimentos. Ninguém falava nada. Todas muito curiosas, mas em absoluto silêncio.
– O que ele tá fazendo? Tirou uma coisa e tá segurando. Cês tão vendo, meninas?
– Gente, será que é o pinto dele?
– Ah, eu acho que é…mas eu nunca vi grande assim.
– Nem eu, respondi. Só vi os pintinhos dos meus irmãos, os dois pequeninos.
– Será por que ele tá mostrando? E balançando…
Nenhuma de nós ria. Acho que por mais inusitado que fosse, engraçado a gente não achava que era. Estranho sim, era mesmo muito estranho.
Fádwa achou melhor a gente parar de olhar. – Vamos sair do meio fio, voltar pro murinho e deixar ele lá, sozinho. – Layla quis ir correndo contar pra sua mãe. Yasmin achava que a irmã não deveria. E se elas ficassem de castigo porque ficaram olhando?
– Vou contar pra minha mãe, eu disse.
– Conta não, doida, e se ela contar pro seu pai? É, Yasmin tinha razão.
Melhor seria não contar nada pra ninguém, seria um segredo só nosso. Era uma coisa errada, disto a gente tinha certeza. Agora, o mais difícil seria calar Layla. Se ela contasse pra mãe dela, a minha mãe também saberia e, certamente, eu ficaria de castigo, sem ir às matinées dos domingos.
E então, o que fazer?
O senhor, com o pinto de fora, havia desaparecido. A porta do quarto encontrava-se quase sempre fechada. Ninguém por lá e nenhum barulho se ouvia. Voltamos pro murinho.
Eu sentia um desconforto por não poder falar nada pra minha mãe. Tínhamos um pacto, entre mim e ela, de contar tudo tudo tudo uma pra outra. Claro, que quem contava tudo era eu… O que ela teria pra me contar?
Àquela época nada se sabia sobre pedofilia, bulliyng, e não se falava em violência doméstica. Evidentemente já devia existir, veladamente, secretamente, silenciosamente. Guardar aquele segredo me dava mal-estar, me fazia sentir muito desconfortável. Eu queria contar, mas não devia. Havíamos, as quatro, jurado manter o segredo entre nós. Nossa preocupação era a Yasmin, que não tinha palavra. Não guardava segredo, era uma dissimulada e poderia até colocar em risco as nossas próprias vidas!
O tempo passou.
Para todas nós, a cena foi diluindo-se aos poucos, lentamente até quase não nos lembrarmos mais da história. Todas as vezes que a janela do porão estivesse aberta, íamos para bem longe do meio fio, longe do perigo! Melhor não facilitar…
Uma vez, Layla nos disse ter ouvido uma tosse. Sem olhar, fomos diretamente para o murinho e por lá ficamos. Continuamos a manter o segredo entre nós, evitando até falar no assunto. Cada vez que Yasmin dizia: – E o pinto dele, hein? Nós colocávamos o indicador na boca e, juntas fazíamos: – Xiiiiii, calada menina!
Nenhuma das mães ficou sabendo do ocorrido e somente muitos anos depois, eu já mocinha, foi que contei sobre o que se passara conosco.
– Ainda bem que você não disse nada. Ah, se seu pai ficasse sabendo. Já pensou que confusão? E ainda teria que contar pro pai das meninas, você pode imaginar? O professor Josias apanharia um coro só. Daqueles. Podia até dar Polícia.
Eu apenas acenei com a cabeça, concordando!
Naquele tempo, era assim que as coisas se passavam…
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