Categories: COVID-19

Dormência

Dormência – Foto da autora – Vila Lorandi em 18/07/21
Daniela Piroli Cabral
contato@danielapiroli.com.br

O mais previsível da vida é a morte. Essa é a verdade mais evidente. Mas a certeza dessa realidade nos aflige de tal maneira que preferimos ignorá-la e, para driblá-la, fazemos malabarismos. 

A gente se finge forte e eterno. A gente voa, cria, trabalha. A gente experimenta, se expande, se imagina imortal. 

A gente bebe espumante, se alimenta de frutas da estação e de risoto de cogumelos. A gente ama e faz planos para o futuro.

A gente vai à praia, toma banho de mar e água com gás. A gente caminha e escala montanhas.

A gente se acha dono do tempo, quer controlar a vida, disciplinar os desejos do outro. A gente se multiplica, se reproduz, querendo o infinito. 

A gente anda de bicicleta, faz pudim de leite condensado, tira fotos e posta a vida nas redes sociais. O que a gente posta mesmo é o nosso medo da morte, o medo de não ter vivido.

Porque a verdade inequívoca é que a gente é tão humano como roupas estendidas nos varais. E a vida é tão imponderável que deixá-la seguir no seu fluxo parece um desaforo.

A morte nos iguala em todas as dimensões, mas a gente insiste em querer ser diferente, exclusivo, único, especial. 

Escrevo hoje do Rio Grande do Sul, gosto de escrever quando estou aqui. Meu olhar daqui é de estrangeiro, então as paisagens sempre me inspiram muito. Agora o frio está rigoroso, faz entre um e nove graus lá fora. Fico de pijamas e casaco a maior parte do dia. Escrevo. O vento é forte e seu barulho é um uivo contínuo, como nos filmes de terror.

Os álamos e plátanos estão secos, as folhas decíduas caíram todas. Os pomares de maçã e os parreirais também estão sem cor, aparentemente mortos pela aridez do inverno. Não há colheita, só geada. Todos eles estão dormentes, recolhidos, à espera do tempo. São pacientes e sábios, esperam a rigidez do inverno passar para voltarem a brotar. Sabem se proteger. Sabem perceber os sinais dos ciclos para serem o melhor que podem ser. A sabedoria da natureza está explícita por aqui.

Vendo os ciclos de transformações definidos pelas estações do ano, eu penso em alinhar os meus próprios ritmos, a me recolher um pouco mais, um convite a viver mais integrada com a natureza. Ao me harmonizar com os ritmos das estações e do meu próprio corpo, eu me respeito e isso me traz conforto e paz.  

Ontem à noite, a morte nos visitou. A morte, toda concreta em sua irreversibilidade. Um denso nevoeiro invadiu os corações e obscureceu os olhares. Tudo ficou mais frio e cinza, a vida entrou em dormência permanente. E, apesar de toda luz e calor de um verão precoce ao redor, ela não vai mais brotar, não acorda mais.

Tomara que as dores da morte se curem e cicatrizem como as feridas no braço de uma criança.

Daniela Piroli Cabral

Recent Posts

Mona Lisa

Está em cartaz em Belo Horizonte até o dia 8 de dezembro no Espaço 356,…

6 horas ago

Voo, voa, avua

Sandra Belchiolina sandra@arteyvida.com.br Voo, Voa, avua, Rasgando o céu, Voo no deslize. Voo, Avua, Rasgando…

1 dia ago

Dia da consciência negra: sobre o racismo e as relações de escravidão modernas

Daniela Piroli Cabral contato@dnaielapiroli.com.br Hoje, dia 20 de Novembro, comemora-se mais um dia da Consciência…

2 dias ago

Holofote, holofote, holofote

Eduardo de Ávila Assistimos, com muita tristeza, à busca de visibilidade a qualquer preço. Através…

3 dias ago

Merecimento

Silvia Ribeiro Nas minhas adultices sempre procurei desvendar o processo de "merecimento", e encontrei muitos…

4 dias ago

Lágrimas e chuva

Mário Sérgio Já era esperado. A chuvarada que cai foi prevista pelo serviço de meteorologia…

5 dias ago