Único médico na cidade, doutor Wanderley acabara de entrar em casa debaixo de um temporal nunca visto. Estava exausto após um dia inteiro de andanças pela zona rural, atendendo o sofrido e carente povo da roça. Médico exemplar e de alto espírito humanista, ele gozava de grande prestígio e respeito de toda a população.
Mal esticara as pernas sobre o sofá, tocaram a campainha da casa. Era Quinzinho da assistência social, molhado da cabeça aos pés.
– Doutor Wanderley, me perdoe o incômodo, mas preciso de sua ajuda.
– O que aconteceu, Quinzinho?
– Hoje pela manhã, encontramos um andarilho morto na entrada da cidade, mas o senhor já tinha ido para a roça. Preciso do atestado de óbito para enterrar o corpo.
– A gente podia deixar isso para amanhã, Quinzinho. – Falou o médico que já não aguentava mais de cansaço.
– Tem lugar para o corpo ficar não, doutor. Tem que enterrar – insistiu Quinzinho – já até arrumei ele no caixão. Tá tudo pronto – falou.
Doutor Wanderley quase não acreditava. Ter que sair debaixo daquele temporal, depois de um dia inteiro de muito trabalho, era o que ele menos queria. O médico pensou, pensou e arriscou:
– Você tem certeza que não é gente da cidade?
– Absoluta, Doutor. Não é gente daqui não.
– E você tem certeza absoluta que ele está mesmo morto? – insistiu o médico.
– É claro Doutor. Já encontrei o nego duro, frio e sem respirar nadinha – garantiu Quinzinho demonstrando seus conhecimentos fúnebres.
O cansaço falou mais alto e o Doutor Wanderley assinou o atestado de óbito sem sair de casa. Quinzinho mais do que depressa tomou rumo e tratou de ir para o cemitério passar a encomenda pra frente. Como sempre, encontrou Zé da Cova, sentado à frente da capela com a enxada numa mão e uma garrafa de cachaça na outra.
– Zé, o atestado do Doutor Wanderley está aqui. Pode enterrar o homem – falou Quinzinho encerrando seu expediente.
– Pode deixar o papel aí que quando a chuva parar, eu jogo sete palmos de terra nele – respondeu Zé da Cova, entre um e outro gole de cachaça.
Quando a chuva parou, o coveiro tratou da encomenda. Limpou a cova, baixou o caixão, rezou uma Ave Maria e um Pai Nosso e se preparava para descer a primeira pá de terra, quando parou e falou para ele mesmo ouvir:
– É meu costume, há mais de vinte anos, só enterrar depois de ver a cara do freguês.
Retirou o caixão e abriu a tampa, para manter a tradição. Nisso, o defunto levantou meio sonolento e, ainda sentado, falou:
– Ô moço, eu não morri não…
Zé da Cova retirou o atestado de óbito do bolso, conferiu a assinatura do Doutor Wanderley e falou bravo, olhando para a cara do defunto:
– E você quer saber mais do que o Doutor Wanderley, médico competente e honesto da nossa cidade?
Ato contínuo deu uma pazada na cabeça do pobre coitado, fechou o caixão e derrubou sete palmos de terra em cima. Botou a garrafa de cachaça debaixo do braço e saiu resmungando:
– Onde já se viu, um Zé Ninguém duvidar da palavra do Doutor Wanderley.
*
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