Doutor Wanderley, o coveiro e o defunto

Doutor Wanderley, o coveiro e o defunto – Foto: Pixabay
Márcio Magno Passos

Único médico na cidade, doutor Wanderley acabara de entrar em casa debaixo de um temporal nunca visto. Estava exausto após um dia inteiro de andanças pela zona rural, atendendo o sofrido e carente povo da roça. Médico exemplar e de alto espírito humanista, ele gozava de grande prestígio e respeito de toda a população.

Mal esticara as pernas sobre o sofá, tocaram a campainha da casa. Era Quinzinho da assistência social, molhado da cabeça aos pés.

– Doutor Wanderley, me perdoe o incômodo, mas preciso de sua ajuda.

– O que aconteceu, Quinzinho?

– Hoje pela manhã, encontramos um andarilho morto na entrada da cidade, mas o senhor já tinha ido para a roça. Preciso do atestado de óbito para enterrar o corpo.

– A gente podia deixar isso para amanhã, Quinzinho. – Falou o médico que já não aguentava mais de cansaço.

– Tem lugar para o corpo ficar não, doutor. Tem que enterrar – insistiu Quinzinho – já até arrumei ele no caixão. Tá tudo pronto – falou.

Doutor Wanderley quase não acreditava. Ter que sair debaixo daquele temporal, depois de um dia inteiro de muito trabalho, era o que ele menos queria. O médico pensou, pensou e arriscou:

– Você tem certeza que não é gente da cidade?

– Absoluta, Doutor. Não é gente daqui não.

– E você tem certeza absoluta que ele está mesmo morto? – insistiu o médico.

– É claro Doutor. Já encontrei o nego duro, frio e sem respirar nadinha – garantiu Quinzinho demonstrando seus conhecimentos fúnebres.

O cansaço falou mais alto e o Doutor Wanderley assinou o atestado de óbito sem sair de casa. Quinzinho mais do que depressa tomou rumo e tratou de ir para o cemitério passar a encomenda pra frente. Como sempre, encontrou Zé da Cova, sentado à frente da capela com a enxada numa mão e uma garrafa de cachaça na outra.

– Zé, o atestado do Doutor Wanderley está aqui. Pode enterrar o homem – falou Quinzinho encerrando seu expediente.

– Pode deixar o papel aí que quando a chuva parar, eu jogo sete palmos de terra nele – respondeu Zé da Cova, entre um e outro gole de cachaça.

Quando a chuva parou, o coveiro tratou da encomenda. Limpou a cova, baixou o caixão, rezou uma Ave Maria e um Pai Nosso e se preparava para descer a primeira pá de terra, quando parou e falou para ele mesmo ouvir:

– É meu costume, há mais de vinte anos, só enterrar depois de ver a cara do freguês.

Retirou o caixão e abriu a tampa, para manter a tradição. Nisso, o defunto levantou meio sonolento e, ainda sentado, falou:

– Ô moço, eu não morri não…

Zé da Cova retirou o atestado de óbito do bolso, conferiu a assinatura do Doutor Wanderley e falou bravo, olhando para a cara do defunto:

– E você quer saber mais do que o Doutor Wanderley, médico competente e honesto da nossa cidade?

Ato contínuo deu uma pazada na cabeça do pobre coitado, fechou o caixão e derrubou sete palmos de terra em cima. Botou a garrafa de cachaça debaixo do braço e saiu resmungando:

– Onde já se viu, um Zé Ninguém duvidar da palavra do Doutor Wanderley.

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