Amor em tempos de Cloroquina

Amor em tempos de Cloroquina – Retrato de uma jovem em chamas – divulgação

“Cara amiga, como vão as coisas?

Escrevo esta carta porque meu celular pifou. Acho que o tratei muito mal nos últimos meses, então ele decidiu se rebelar. Por aqui, tudo vai meio… estranho. 

Minha amiga me chamou para tomar um café por videoconferência. Eu na minha casa, e ela na dela, às 16h. 

Provavelmente escolheremos um lugar que bata pouco sol, para não atrapalhar na iluminação. Vamos conversar sobre como tem sido passar tanto tempo trancafiadas dentro de casa. 

Tenho conversado mais com outra amiga sobre os erros de storytelling da saga Crepúsculo, que se tornam gritantes depois de certa idade. Rimos, por mensagem, e nos perguntamos como podem ter deixado aquilo ser produzido.

Descobri que consigo fazer comida para quatro, em menos de meia hora. Um macarrão ao molho, que todos na mesa comem até lamber os dedos. Não me lembrava a última vez que sentei para comer com rostos conhecidos.

Comecei a assistir a série clássica de Doctor Who, filmada nos anos 60. Um pouco mais morosa do que a refilmagem atual, mas é lá onde tudo começa. Estou ansiosa para descobrir novos mundos junto com o Doutor.

Descobri que me interesso mais sobre política e desenvolvimento na América Latina do que qualquer outro lugar. Acho que vou me especializar. 

Tenho abraçado mais a minha avó, mesmo que ela odeie abraços e me dê beliscões pelo corpo, mas como disse a Taís em uma das postagens de sexta-feira, certas dores são suportáveis.

Demorei mais de duas semanas de isolamento social para começar a aceitar toda a situação. Estava em negação por aqueles que falavam que voltaríamos em um mundo completamente diferente.

Não notei isso depois de ser sorteada para ir ao supermercado, após nossos suprimentos de guerra terem se esgotado. Para minha surpresa – ou nem tanto – o mundo continuava lá, exatamente como eu me lembrava. 

Absorto, injustamente, ao nosso sofrimento. Sem se importar, o vento segue seu curso, levando partículas de cloro e álcool em gel para todos os cantos. 

Depois de tudo isso, cheguei a conclusão de que se ele continuou, nós também vamos continuar. Nos atrasando para reuniões, marcando cafés pessoalmente, discutindo outra história adolescente sem sentido, sentando à mesa para comer com rostos conhecidos vez ou outra. 

Nós só precisamos esperar, uma semana ou duas. Mas, te prometo uma coisa, minha amiga. Nós não contaremos nossos mortos, e não enterramos sete mil deles.

Espero que me escreva de volta logo. Como disse a personagem Héloïse no filme Retrato de uma Jovem em Chamas,na solidão, senti a liberdade que você falou. Mas também senti a sua falta.” (Dans la solitude, j’ai ressenti la liberté dont vous avez parlé. Mais tu m’as aussi manqué).

Com amor, 

Victória Farias.

Belo Horizonte, 28/março/2021.

Obs: Amor em tempos de Cloroquina é uma alusão ao livro Amor em Tempos de Cólera, do escritor Gabriel García Márquez.
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