Sandra Belchiolina
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“Mãitina era pessoa para qualquer hora falar no Dito e
por ele começar a chorar…. Escondido, escolheram um
recanto, debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco,
cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito
furtaram, para enterrar, com brinquedos dele….
Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos…”
Guimarães Rosa
Uma criança inteligente manifesta precocemente, após três anos de idade, sua busca por respostas para as duas perguntas que percorrem a vida humana: de onde viemos e para onde vamos? Nas suas brincadeiras apresentarão suas tristezas e alegrias referentes a essas indagações.
Freud, observando seu neto de um ano e meio na brincadeira denominada “fort da” esclarece que o processo de luto é constituído desde muito cedo – fort (foi embora) da (aqui de volta). Nela, ele remetia um carretel preso em uma linha para longe, onde não pudesse vê-lo – entristecia-se com isso. Num segundo movimento, puxava o carretel para perto de si e alegra-se.
Nesse esconde-aparece-trás-para si, o cientista observa que a criança tenta elaborar o “desaparecimento da mãe” e o seu retorno. Assim, a criança inicia sua separação do objeto amado – a mãe ou função materna, como Lacan esclarece, e que pode ser realizada por outra pessoa que não a mãe biológica.
As brincadeiras de esconde-esconde onde a criança se esconde dela mesma num espelho, ou com a presença de outro são muito apreciadas e também seguem a mesma lógica da referida por Freud. Lembrei-me de um filme que assisti há alguns anos, onde adultos procuravam o tesouro escondido por uma criança.
O tesouro, no final era uma lata de bolinha de gude. O que simbolizava um grande tesouro para o menino. Meus irmãos também o fizeram na infância. Quando a nossa casa passou por uma reforma e as bolinhas emergiram do passado, fizeram uma festa. Essa brincadeira é uma projeção para o futuro – quero te encontrar lá na frente e quando for mais velho. É uma esperança na vida e no envelhecimento.
Assim, a forma que elaboramos nosso estar no mundo, nossas perdas e projeções para o futuro, nos constitui e organiza a realidade suportando um real devastador. Esse momento de luto no Brasil por suas mais de 103.000 pessoas falecidas pela COVID-19 é uma questão que nos faz debruçar e pensar em como cada brasileiro está lidando com esse luto. São vidas de famílias que estão envolvidas, são memórias relembradas com “todas as lágrimas nos olhos”, como as Miguilim, que passam por essa elaboração e reorganização na vida.
Ser insensível a tanta mortalidade no mínimo carrega certo nível de perversão. Nossas mídias anunciam que a situação está estabilizada há semanas e se não observarmos isso, passa a ser um fato corriqueiro. As mais de mil mortes por dia mostram que o brasileiro não pode “baixar a guarda”, ou relaxar com os cuidados necessários para evitar a propagação da doença; é preciso evitar um desastre muito maior. Qual a nossa projeção? Com certeza não é boa.
A pandemia escancarou para o mundo a interligação em que vivem os povos da Terra. O que já era exposto, sabido e negado por muitos. Visto as causas ambientais presentes desde o final dos anos 70, quando os estudos e preocupações com o planeta foram manifestados mundo afora. E, falando em negação, o brasileiro está se mostrando mestre nisso.
Esse mecanismo de defesa pode se dar por motivos diversos e singulares, mas com certeza as experiências infantis e a perda do objeto amado faz parte de como lidamos com o luto na vida. Há os que o vivem, elaboram e vão à luta em busca de seu desejo; como há aqueles que não reconhecem a falta e buscam tamponá-la com mil coisas e justificativas – o que é em vão.
Hoje, em minha caminhada matinal, vi que é tempo das paineiras soltarem suas painas e com o coração cheiro de alegria escutei o choro de um recém-nascido. Não quero ser insensível e desejo que a vida se manifeste em cada coração enlutado de nosso mundo. Seguimos no luto e na luta!