– Cleonice, quero te dizer uma coisa.
– Pois, diga.
– Eu vou me casar com você.
– Como é Valdemar? Você acha que eu sou um objeto de uma loja, que você pode escolher possuir?
E foi assim que meu avô, Valdemar Dantas de Farias, “pediu” minha avó, Cleonice Vieira Gonzaga, em casamento. Explico. Minha avó nasceu em Aracaju, capital do menor estado brasileiro, Sergipe. Muita gente não sabe que ele existe “Sergipe, onde fica isso?”. Mas existe, é só você procurar direito. Dica de ouro: não fica no sudeste. Tente de novo.
Em uma viagem a uma cidade igualmente pequena, Olindina (BA), para visitar e ajudar uma irmã que estava grávida – isso lá nos nada saudosos anos 60 – minha avó acabou, sem querer, encontrando o amor da vida dela – não que ela admita isso, “apaixonada, eu? Nunca” – o que rendeu um casamento de 27 anos (por conta da morte prematura de Valdemar), 4 filhos, alguns netos que ainda se multiplicam e uma geração de bisnetos que começa a chegar agora.
Nesta viagem que durou 30 dias, minha avó não estava exatamente procurando por alguém. Tinha perdido a mãe com 18 anos e o pai aos 21, e, como a mais responsável da casa, ficou com a incumbência de cuidar de nove irmãos mais novos, mesmo tendo outros três irmãos mais velhos, já casados (por isso ela tira de letra cuidar de mim).
Faltando 15 dias para ir embora de Olindina, esse diálogo aconteceu:
– Cleonice, vamos ali na casa de Dona Mariquinha, quero ver uma amiga que está passeando na casa da mãe.
– Tudo bem, vamos.
– Mas é o seguinte, ela tem um filho, você pode namorar com qualquer um dessa cidade, menos com ele, tudo bem?
– Oxi, Conceição, o que é isso? Não tô querendo namorar não.
Pobre Conceição, fico pensando na cara dela no dia do casamento.
No primeiro dia que eles se viram, Valdemar estava voltando da feira, onde vendia roupas. Ele chegou, e tomou o banho mais rápido da vida dele (será que ele lavou o rosto direito?) e se sentou na mesa de café com Cleonice, Conceição e a mãe dele, dona Mariquinha. Foi aí que aconteceu. Foi exatamente nesse instante que os olhos cor-de-mel de Cleonice encontraram os olhos castanho-escuro de Valdemar. Ele teve certeza, ela achou que o cabelo dela tava bagunçado.
Depois disso, menos de uma semana antes dela ir embora, ele foi visitá-la t-o-d-o-s o-s d-i-a-s. Arrumava várias desculpas (uma pior que a outra. Sério, vó?). Num dia desses, ela estava de saída para visitar outra pessoa, e os dois foram andando juntos. Ele disse:
– Sabe, Cleonice, eu venho aqui todos os dias só para te ver.
Cleonice não disse nada. Achou que o homem tava doido. Maluquinho. Tendo alucinações e tudo mais. Mas aí, um dia, depois de voltarem juntos a outros amigos da pracinha (anos 60, cidade pequena = jovens na pracinha), aconteceu:
– Eu vou me casar com você.
Três dias depois Cleonice foi embora. Não deu muita bola. Não se achava muito bonita e tinha certeza que nunca, na vida, iria se casar. Quatro meses depois, sem avisar, quem aparece na porta da casa de Cleonice? Isso mesmo, Valdemar. Com mala e tudo.
– Cleonice, vim dizer que a nossa casa já está quase pronta.
(Pausa para rir da cara de Cleonice kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk)
– Como assim, Valdemar?
– Eu disse que ia me casar com você. Vim aqui pedir a sua mão para o seu irmão.
– Como assim pedir minha mão? Quem tem que decidir se caso ou não sou eu.
(Pausa para rir da cara de Valdemar kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk)
– Tudo bem. Então vim avisar a eles. Vamos no cartório dar entrada nos papéis.
E essa foi a última – e única – vez que se viram antes do casamento, que aconteceu 7 meses, uma carta e um telegrama depois de se conheceram. Mas não foi só isso. Dias antes do casamento, Valdemar mandou uma carta para Cleonice dizendo que não sabia se chegaria em tempo, e queria avisá-la. Cleonice disse: “pelo menos não perco tempo me maquiando.” Cinco horas antes da cerimônia, quem aparece na porta da casa dela? Valdemar! Nesta data, uma amiga se ofereceu para fazer a ornamentação da noiva, e, pela primeira vez, Cleonice foi ao salão.
Se casaram, e nove meses e seis dias depois, o primogênito nasceu. Mas, o mais importante, é que anos depois, eu nasci. Toda vez que Cleonice me fala sobre o casamento dela, como o fato de que quando completou 50 anos, ela tirou uma foto e deu para cada filho pensando que ia morrer, ou quando Valdemar agarrava ela para dançar, por que tinha medo dela sair correndo, eu acredito um pouco mais em amores únicos.
Às vezes, quando vejo que ela está meio para baixo, ando pela casa atrás dela falando – me conta de novo como você e o vô se conheceram. – de novo?
– de novo.
– Mas eu já falei isso tantas vezes.
– Pois, fale de novo.
– Eu estava em Olindina…
eu prendo a respiração na parte que ela fala sobre o “pedido de casamento”. Ela ainda não tem certeza (pelo amor de Deus, vó), mas fala dele como se fosse um velho amigo. Alguém que encontrou em uma esquina. Dessa história, já se passaram 55 anos. Hoje ela tem 80, os cabelos muito mais brancos dos que o da foto que tirou quando tinha 50. Mas, uma coisa ainda não me satisfaz. Você acredita que até hoje ela não admite que eles deram o primeiro beijo? Mas é cada uma viu, que parece dez.
Pão esquecido no forno é como minha avó chamava ele. Você esquece o pão no forno, ele cresce e queima. / Foto capa: os dois dançando em um baile. Ele segurando ela com firmeza, para ter certeza que ela não iria fugir. / Foto texto: aniversário de 80 anos dela, no final de 2019.
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