Guilherme Scarpellini
scarpellini.gui@gmail.com
A vida em caixote vem nos impondo, além de corpos isolados, cabeças surtadas — a do presidente então: pifou! — e coraçõezinhos apertados, experiências dignas de um conto de Franz Kafka.
Um desses rompantes do absurdo ocorreu no último sábado, enquanto assistíamos ao festival de lives — do inglês: ao vivo, só que gravado — “One World: Together at Home”, transmitido na internet.
De repente, cabum!, fomos metamorfoseados em mosquitinhos do tamanho de um cisco. Entramos pela frestinha da janela de gente como Elton John, Paul McCartney, Stevie Wonder e os Stones, como partículas de poeira viajam no ar.
Durante oito horas de voyeurismo digital, espiamos performances ultraintimistas, cujos palcos eram um sofá de sala, um quarto revirado ou até mesmo um quintal de casa.
Lá pelas tantas, depois de ter sobrevoado uma e outra taçinha de vinho — porque mosquitinho também é gente! — pensei: como seriam as apresentações de grandes artistas nos tempos em que lives só eram possíveis diante de arenas lotadas — e ao vivo.
Elvis Presley, por exemplo, apareceria na telinha vestindo um roupão de linho branco com estrelas bordadas em dourado, e o topete desarmado.
Sentado ao piano de cauda, em sua mansão no alto das colinas de Memphis, ele daria o tom de “Unchained Melody”, e cantaria linda e sofregamente, como o fez em Las Vegas, em 1977, quando a morbidez e os barbitúricos já ameaçavam tomar o trono do rei.
Debruçada sobre um balcão de madeira onde jazz — não pude evitar o trocadilho — uma garrafa vazia, Amy Winehouse cantaria um antigo rhythm & blues qualquer — o violão a acompanharia na outra metade da tela.
Ela trazia três andares de cabelos edificados ao topo da cabeça, sombras negras em volta dos olhos e a boca vermelha ensaiando um sorriso bêbado.
De repente, veríamos aquele seu namorado-problema — como é mesmo o nome do cafajeste? — passando atrás dela, como um gafanhoto rondando a flor. Amy então assumiria um ar grave e cantaria “Back to Black” até morrer.
Michael Jackson não dividiria telas. Ele era a banda, os vocais, os dançarinos — o show.
Afundado numa poltrona, o rei do pop apareceria basiquinho: óculos escuros, terninho decotado e chapéu, e o rosto pálido envolvido pelos cabelos negros, como uma lua cheia mergulhada nas brumas da noite.
Ele começaria fazendo à capela uma canção-autoajuda para o confinamento: “You Are Not Alone”. E depois, de pé, lançaria um moonwalk, ao som de “Billie Jean”.
Mas logo que soltasse o primeiro Au!, coitado, acabaria engasgando. Era um mosquitinho que ia passando, e se deu mal.