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Uberização do trabalho

Divulgação/Pixabay
Guilherme Scarpellini
scarpellini.gui@gmail.com

Eu atravessava a avenida Getúlio Vargas quando avistei algo vindo rápido em minha direção. Não era bicicleta; pelo barulho, era moto. Mas pelas curvas, só podia ser bicicleta. Talvez uma bicicleta que resolveu ser moto, eu não sabia.

A convicção só veio com o som da freada: era um entregador por aplicativos. Ele avançou o sinal vermelho e me encontrou pelo caminho.

Por sorte, conseguiu desviar-se, evitando o pior. Mas da minha fúria, ah!, disso ele não escapou. Ouviu as piores gentilezas que só ouvimos nos campos de futebol.

Contemplei até a senhora mãe dele, coitada, que àquela altura, imagino eu, ligava os pontos do seu crochê, longe daquela cena, na santa inocência das senhoras que fazem crochês em frente à tevê.

Bastou-me o desabafo para que eu então me arrependesse: aquele pobre e coitado não era qualquer um. Era um pobre e coitado entregador por aplicativos.

Ele roda trinta quilômetros e doze horas ao dia por sete dias sem descanso. Não tem férias, décimo terceiro, carteira assinada, plano de carreira, perspectiva de ascensão e qualquer direito básico trabalhista.

É invisível para o Estado e a sociedade finge que não o vê. Faz-se percebido apenas quando o porteiro anuncia a sua chegada, às tantas da madrugada, trazendo porções de gordura trans dentro de uma bolsa enorme nas costas.

E quando se atrasa — ou quando morre pelo caminho, como Thiago de Jesus Dias, 33 — a sua ausência também pode ser notada. “Cadê a minha pizza?”, queixaria um estômago atacado por larica. “Dê zero estrela pra ele”, aconselharia um cérebro contaminado pelo sistema de entregas por aplicativos.

O sistema é conhecido, estudado e tem nome: chamam-se uberização do trabalho. É sabido que ele engole seres humanos e regurgita máquinas que operam contra o tempo para aumentar o número de entregas.

Não há empregados, mas parceiros credenciados. Não há patrões, mas empresas de tecnologia livres de ônus. Não há relação de trabalho, mas uma forma de exploração, a serviço de empresários bem instalados em algum escritório do Vale do Silício.

Ainda assim, os efeitos do desemprego e a falsa sensação de autonomia atraem todos os dias um exército de novos parceiros. Eles precisam se virar, sem qualquer amparo e assistência, para entregar produtos a consumidores cada vez mais exigentes.

O imperdível novo filme de Ken Loach, Você Não Estava Aqui, ataca esse ponto e lança a pergunta: até onde somos donos do próprio nariz em meio à economia dos aplicativos?

Pela experiência do protagonista, Rick Turner, a resposta passaria por endividamento com o aluguel do veículo utilizado nas entregas, multas pelo tempo de atraso e intolerância por parte de quem está do outro lado do aplicativo.

E quando Turner chega ao limite da sanidade, ele percebe que não tem escolha, senão atender ao próximo pedido.

Sob a perspectiva de um círculo vicioso, o filme parece denunciar uma nova forma de escravidão. Ela tem nome: uberização do trabalho.

Em cena do filme “Você Não Estava Aqui”, Rick Turner, com a ajuda de sua filha, corre para concluir mais uma entrega por aplicativo. (Divulgação/Facebook)
Guilherme Scarpellini

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  • Há também um documentário brasileiro, "Vidas Entregues" ,sobre o exposto. Absurdo os lesgiladores brasileiros se omitirem diante de tanta desumanidade!

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