O banco na árvore

Rosangela Maluf

Todos os meses, ao apresentar aos meus pais a caderneta do colégio, minha barriga doía, num misto de preocupação e medo. Por mais que eu fosse boa aluna, estudiosa, com ótimas notas, havia um problema sério: quando o aluno se comportava mal, fazia coisas que não devia, conversava demais ou perturbava as aulas, a nota em “Comportamento” vinha em vermelho, nota sete. Eu não sabia como explicar aquele 7! Procurava algumas desculpas esfarrapadas que não convenciam muito.

– A sua sorte – meu pai dizia – é que as outras notas estão boas, senão… (raspava a garganta, assinava o boletim e eu então respirava aliviada: até o mês seguinte).

Era bem verdade que eu conversava muito. Ria muito. Agitava muito e arrastava uma legião de seguidoras. Entretanto, era muito boa aluna em todas as disciplinas, menos em matemática – sempre detestei! Para mim, ir à escola era uma festa. Em alguns dias, eu me comportava como um anjo; em outros, a anja dava lugar ao capetinha e aí…

A semana começara sem nenhuma novidade. Na segunda-feira, pela manhã, fui para a escola. Voltei, almoçamos todos juntos e meu pai me disse:

– Termina seu almoço. Come tudo, depois você vem comigo. Tenho uma coisa para você.

– O quê??? Pensei que eu havia feito mais uma “arte”.

– Vamos ao quintal, lá embaixo. No pé de manga.

Quando chegamos e subi no pé de manga, descobri umas ripas de madeira clara, colocadas meio por acaso, e não entendi. Na bifurcação de dois galhos mais grossos, ele havia colocado uma madeira, encaixada perfeitamente nos troncos. Um pouco acima, mais dois outros galhos também com uma madeira colocada. Uai, o que seria aquilo?

– Senta aí, na mais baixa.

Obedeci.

– Coloque suas mãos na madeira mais alta.

Obedeci ainda sem entender muito bem.

– Viu? Agora você já tem um lugar diferente para fazer seu “Para casa”.

– Aqui? Como assim… Na árvore? É igual a uma carteira da escola?

– Isso mesmo. Você não precisa trazer a pasta (escolar). Traz o caderno e o estojo. Antes, aponte os lápis, veja se tem borracha. Se precisar colorir alguma coisa, pegue a caixinha de lápis de cor e traga também. Gostou? Quero só ver se, de agora em diante, não vejo mais nota vermelha naquela caderneta.

Desci da árvore e subimos em direção à casa.

Corri até o meu quarto. Abri a minha pasta de couro marrom. Peguei o caderno de “Dever de casa” e o estojo. Gritei pela minha mãe para que ela viesse ver de onde eu faria, a partir de agora, os meus exercícios da escola. A partir de hoje, eu teria uma árvore só para mim. Nunca havia pensado nisso… uma cadeira, uma carteira, na árvore!

A tarde estava quente, mas ventava um pouco. Sentadinha em meu novo escritório, eu podia pegar com a mão as folhas, os galhos e as mangas. Eu olhava para cima e via o céu bem azul. Podia ver as casas da rua de baixo. Podia ver o rio Piracicaba, amarelado, lá no fundo. A ponte. As casas da rua Siderúrgica.

Meus irmãos chegaram. Subiram os dois e nos dividimos entre as duas ripas e outros galhos. Fizemos uma pequena comemoração enquanto minha mãe recomendava-nos cuidado e atenção.

Aquele espaço era único, e todas as minhas amigas e os amigos dos meus irmãos foram conhecê-lo. Os galhos tornaram-se outros bancos, e a gente cantava, gritava. Torcia para que o vento soprasse forte. Queríamos, além da novidade, um pouco de emoção e perigo. A sensação de liberdade vinha associada ao desejo de voar. A alegria dava origem aos gritos. Compartilhar aqueles galhos, a sombra e as frutas fazia de mim uma anfitriã e tanto. Quem não queria conhecer minha árvore?

Hoje, vejo as crianças insatisfeitas com tudo o que têm e com tudo o que ganham. Eu mesma, moradora de apartamento, nunca pude construir para os meus filhos uma casa na árvore, mas procurei, na medida do possível, proporcionar-lhes alegrias assim, inusitadas e significativas.

Meu pai, meio sério, muito calado, um pouco sisudo, foi um mestre na arte de me proporcionar pequenas alegrias que se tornaram gigantes conforme o tempo foi passando. Hoje, consigo entendê-lo perfeitamente. Deleto as pequenas tristezas e sobrevivo feliz à custa de tudo o que me foi dado, com todo amor que lhe era possível dar.

E assim foi…

10 comentários sobre “O banco na árvore

  1. O seu relato me proporcionou uma viagem ao passado. Trouxe-me as lembranças das gangorras no quintal, das bonecas que “desapareciam” misteriosamente no mês de novembro e reapareciam renovadas no Natal de roupinhas novas, trancinhas com lacinhos novos e cabelos perfeitos. Parabéns e obrigada por proporcionar uma volta à infância.

    1. Delícia de história …relato isso tanto quando relembro da minha infância a alguém….as coisas simples da vida, feitas com amor marcam eternamente nossa vivência.

  2. Adorei sua história, como foi boa sua infância, não posso dizer o mesmo da minha, não fui criada com meus pais, mas agradeço muito a Deus pelos meus avós que me criou com muitos mordomia, mas eu era tão levada que fui parar no internato de Itabira, mas foi bom aprendi muitas coisas boas lá, principal artes! Está de pé nosso encontro para um café, viu? Beijos no coração!❤️‍

  3. Bela crônica. Como dois pedaços de madeira, colocados estrategicamente numa árvore, são capazes de dar tanta alegria, de serem usados para fins diversos? De unitária carteira para os afazeres escolares a sala de estar epara os papos animados com amigos…
    Como um gesto tão pequeno de um pai atencioso pode ensejar tantas e perenes lembraças na filha!
    Sua crônica levou-me a fazer reflexões sobre os meus pequenos gestos passíveis de deixar boas lembranças nos meus três filhos.
    Um ótimo mergulho no passado.
    Parabéns.

  4. Como é bom recordar a infância, sua palavras me fizeram lembrar da minha. Estar em contato com a natureza era meu passatempo preferido.
    Belas palavras lindas recordações!

  5. Tem pessoas q realmente valoriza a atitude de um pai q educa
    Veja isto transformar o castigo em uma bela paisagem de felicidade. Uma criança saudavel e bem educada e cobrada ve a vida por um angulo melhor. Parabens Zanza.

  6. Amei sua história, me trouxe memórias parecidas e momentos especiais da infância nesta cidade maravilhosa, João monlevade, do meu pai, minha mãe, sua família, suas risadas, e o quanto me envolvi em suas palavras. Obrigada. Bjs. Beth couto

  7. Reitero as lembranças que este texto me proporcionou pela primeira vez quando foi publicado. E acrescento as lembranças nesta segunda postagem: as brincadeiras de roda, na Rua Tapajós, sempre no final da tarde até o anoitecer, os cantos com as músicas “Eu sou pobre, pobre, pobre… ” A musica que era um convite
    para brincar “Entrai na roda … A música de passar o anel … Muitas e muitas lembranças de uma doce infância.

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