Rosangela Maluf
Muita gente nas ruas naquela tarde. Muita gente fugindo do sol escaldante. Muita gente espremida naquele ponto de ônibus, esperando com impaciência o ônibus A130. Do meu lado uma senhorinha, sem dentes, mal vestida, cabelo sujo, uma sacola de plástico nas mãos, querendo de todo jeito passar à minha frente. Assim que o painel anunciou “aproximando” fomos para a rua, à espera do ônibus que já chegava. A pequena senhora passou à minha frente e eu recuei um pouco. Nenhum problema; havia uma poltrona vazia e sentei-me justamente ao seu lado; eu, na janela. Sem a menor dúvida ela havia bebido, cachaça. O mau cheiro era horrível, mas mesmo assim ela começou a falar… com a mão cobrindo a boca…
– A senhora mora no bairro Tupi?
– Sim, eu disse e você?
– Moro no Guarani. Tenho meu apartamento lá. Pequeno, simples, mas é meu mesmo. Tá em meu nome. Fiquei viúva e meu marido deixou um dinheirinho bom. Sabe quanto ganho de aposentadoria? – Abriu a mão mostrando os cinco dedos.
– É mesmo? Que sorte a sua, hein? É um bom dinheiro – eu disse.
– Sorte nada. Aguentei aquele maldito por 22 anos. Fiquei aliviada quando ele morreu. E ainda tive que cuidar sozinha de dois meninos. Hoje já são adultos. Um deles, o mais velho, é um menino bão. Evangélico, trabalhador, tem namorada firme, rapaz de ouro. E a senhora tem filhos? – Ela pergunta no meio do relato. – Sim, respondo, tenho dois rapazes, como você.
– Pois é…o meu mais novo, sabe o que ele é? Traficante!
Diante da expressão tão tranquila daquela mãe, me assusto; devo ter arregalado os olhos.
– Mesmo? Drogas? – Pergunto assustada e surpresa com a naturalidade com que ela me conta sua vida.
– Tudo que a senhora imaginar. Ele é homem de confiança do Natanael 5. A senhora conhece o Natanael 5? Sabe quem é? É o maior chefão de toda a Comunidade. A favela inteira tem medo dele. Manda matar por qualquer motivo, qualquer coisa que aborreça ele, sapeca uns tiro. Dizem que matou 5 polícia de uma vez, numa emboscada. Por isto o nome dele, sabe? Mas a senhora já ouviu falar nele, né?
– Não, – eu digo. – Sou nova aqui no bairro.
– Não? Uai, a senhora disse que mora no Tupi! Ah, é nova aqui; por isso então! Sabe, dona, o meu menino mais novo é homem de confiança do Natanael 5. Faz de tudo que for errado, pro chefe, né. Tem maconha, tem cocaína, tem bala, tem doce e (falando baixinho) tem tráfico de armas também. E a senhora adivinha de onde vêm as armas? Da polícia, a senhora sabia? Juro pelo que há de mais sagrado! – (beija os dedos da mão suja). – Os polícia ajuda ele a traficar as armas, os revólver e até droga tem também.
Não quis perguntar sobre bala e o doce. Recolhida em minha parcial ignorância, concordei balançando a cabeça. Fiquei imaginando como teria sido aquela mulher em sua juventude: o cabelo imundo e mal cortado poderia ter sido uma bonita cabeleira, negra, meio ondulada. Os traços do rosto moreno não eram feios, nem eram bonitos, mas poderiam ser melhorados se ela assim o quisesse. A sobrancelha era marcada por lápis preto, totalmente fora de linha. Usava um batom arroxeado que enfeiava ainda mais a boca com poucos dentes. Vestida em trapos, camiseta, bermuda e chinelo. Ao invés de uma bolsinha, levava um saco plástico de onde tirou um cartão da Caixa Econômica e me mostrou dizendo que podia com ele tirar dindin do caixa eletrônico. Eu ouvia calada refletindo sobre toda a narrativa. Resolvi perguntar:
– E você vai visitar os filhos?
– Nada, hoje é sexta-feira, vou ficar com meu véio.
– Ah, você tem namorado? – Pergunto na maior inocência.
– É quase outro marido! Só que a gente mora cada um no seu canto. No final da semana a gente encontra. Olha só pra isto: – ela abaixa a camiseta e exibe um ombro marcado de roxo. Abaixa o outro lado da camiseta e lá estão duas outras marcas, tão escuras quanto a primeira. Ela olha pra frente, se vira e olha pra trás do ônibus. Mostra a barriga e o peito: marcas iguais. Imagino o tamanho dos meus olhos ao ver as marcas de agressão naquele corpo franzino.
– Mas o que é isso – pergunto assustada. – Você permite que ele bata em você?
– Fala baixo, dona. Tem gente aqui que pode conhecer ele. Meu velho é muito ciumento. Posso falar um palavrão pra senhora? Ele machuca muito, até a minha b……. fica toda machucada. Fico roxa, toda roxa.
– Mas você não pode permitir que ele te agrida assim, que ele bata em você, isto é um absurdo. Existe uma lei que te protege. Você não pode admitir que ele faça isto. Denuncia ele pra polícia. Fale com alguém do Serviço social. Os seus filhos falam o quê sobre isto…
– Ah, meu veio é bão, só é ciumento. Ele tem 78 anos e não dá no couro. A senhora sabe, eles gostam de…chupar (fala bem baixinho). E a gente tem que fazer o que eles quer. Mas é um homem bão. Tem hora que acho que ele gosta mesmo é do dinheiro que eu levo pra ele. Com meu dinheiro compro as coisa pra fazer pra nós. Compro bebida, cachaça e vinho tinto que ele gosta. Vou perguntar uma coisa: Quantos anos a senhora acha que eu tenho?
– Ah, difícil falar, sou muito ruim pra essas coisas.
– Tenho 43 vou fazer 44 em maio. Sou nova ainda. Vou aproveitar muito a vida. O meu filho mais novo vai tomar jeito, pelo sangue de Jesus, ah vai sim. Na semana passada bati na cara dele. Dei muitos tapa, tava com muita raiva e ele nem se mexeu. Não deu um pio! Falei que se ele não parar com esta merda de vida não deixo mais ele morar comigo. Pode escolher: toma jeito de gente ou sai pra mundo e nunca mais procura eu nem o irmão.
Rapidamente faço uma conta: se o mais velho tem 28, esta mulher foi mãe aos 16. Nada pergunto. Só observo e ouço com toda atenção. Me interesso pela sua história e não preciso fazer pergunta: dela o relato sai espontaneamente, aos litros.
– A senhora é muito bonita. Tira o óculos, gosto de ver tudo.
(Obedeço)
– Gostei da senhora, quando que a gente vamos se encontrar outra vez?
– Não sei, quem sabe? – E ela me olhando, sorrindo.
– Se eu falar uma coisa pra senhora, a senhora jura que acredita em mim?
Não respondo e fico esperando. Ela abre o saco plástico e tira uma carteira profissional, coloca no colo. Pega o cartão da Caixa que já me havia mostrado. Coloca no colo também. Um lenço encardido, dobrado. Um prendedor de cabelo. O batom roxo, imagino. E me mostra um papel.
– Tá vendo aqui? Ó, dia 19, só dia 19 a mulhé disse eu vou poder receber. Não tenho dinheiro nem pra pagar a passagem. Tá vendo como a gente sofre? E vou falar com a senhora, eu podia descer aqui, pela porta da frente, sem pagar como esta meninada sempre faz, mas não acho correto. Não sou aleijada nem velha. Não gosto de dar prejuízo pra ninguém. Sabe o que eu queria pedir pra senhora? Paga a passagem pra mim! É R$4,50. Vê aí se a senhora tem dinheiro. Vou agradecer muito.
Abro a bolsa, tiro a carteira e dou a ela uma nota de R$5,00 reais.
Quase próximo ao ponto, onde devo descer, o ônibus freia inesperadamente. Tudo que estava no colo dela se espalha pelo chão. Sem saber o que fazer ela pega da minha mão o dinheiro; me abençoa com a graça de Jesus e se levanta pra catar do chão todas as coisas espalhadas.
– Puta que pariu, véi, – ela fala pro motorista. – Sacanage, hein ?
– Ô dona, meu nome é Laurita. Vai com Deus, viu dona, gostei muito da senhora.
– Bonito nome, eu digo, vá com Deus você também, Laurita.
Desço do ônibus. Um pouco ainda aturdida com o teor da prosa, continuo conversando comigo mesma, até chegar em casa. A tarde já se fora e nem sol havia mais.
Que lindo conto. Cmo tudo que você escreve, adorei!! Bjsss…