Ultimamente, tenho me interessado muito pelo campo das palavras e sobre o que elas são capazes de dizer (e de silenciar). Parece óbvio e nem tão novidade assim, já que sempre gostei de ler, desde 2018 sou colunista deste blog e atualmente tenho escrito uma tese de doutorado na área da psicologia.
Acontece que neste primeiro semestre chegaram às minhas mãos três leituras que mudaram completamente a minha compreensão do uso das palavras e a importância da narrativa. Lia Meruane, Grada Kilomba e Filipe Campello são autores de algumas obras que problematizam o discurso e tratam o campo narrativo como lugar de disputa de poder, seja político, religioso, social, individual.
Assim, aspectos da guerra Israel x Palestina, as dinâmicas do racismo estrutural e do cotidiano e a experiência afetiva são determinantemente influenciados pela forma que são narrados e por quem.
Os discursos são capazes de reconhecer, validar, delimitar, como também invisibilizar, explorar, violentar, dependendo do vocabulário e da gramática que se utiliza. Os questionamentos de Kilomba sobre os efeitos práticos das palavras são contundentes:
Quem pode ver seus interesses políticos representados nas agendas nacionais?
Quem pode ver suas realidades retratadas na mídia?
Quem pode ver suas histórias incluídas nos programas educacionais?
Quem possui o que?
Quem vive onde?
Quem é protegido quem não é?
Recentemente escrevi sobre isso no texto “Neutre” para dizer da importância de se utilizar o vocabulário neutro, no qual o oprimido se reconheça, e através do qual possa expressar sua dignidade, manifestar seus desejos, exercer sua cidadania.
No fim, trata-se do reconhecimento de existências até então inexistentes, não no plano biológico, mas no plano discursivo.
Na última sexta, dia 29, assisti ao filme “Cafarnaum” e me intriguei com essa palavra. Sem dar spoiler deste ótimo filme que merece ser visto e revisto, trata-se de uma obra da cineasta Nadine Labaki, do ano de 2019, que aborda a precariedade e a vulnerabilidade de certas vidas e as inúmeras consequências imprevisíveis e, até certo ponto improváveis, das dinâmicas de exclusão e desigualdade social.
Cafarnaum também refere-se a uma localidade antiga, uma vila pesqueira localizada no norte de Israel, quase divisa com o Líbano, hoje em ruínas, onde se historicamente atribui o centro do mistério de Jesus na Galileia, palco de diversos milagres como a multiplicação dos pães e peixes.
Além disso, segundo o dicionário Oxford, Cafarnaum é um substantivo masculino que significa lugar em que há tumulto ou desordem, local onde objetos diversos são amontoados ou guardados desordenadamente ou falta de ordem, confusão, mixórdia, miscelânea.
Mais uma palavra nova, que carrega uma pluralidade semântica e que ilustra a potência de uma palavra bem dita, capaz de evidenciar vulnerabilidades, ancestralidades, desordens e caos, bem do jeitinho que a gente é.
Referências:
Campello, Filipe. Crítica dos afetos.
Kilomba, Grada. Memórias da Plantação.
Meruane, Lina. Tornar-se palestina.
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