Daniela Mata Machado
“Não se curem além da conta.
Gente curada demais é gente chata.
Todo mundo tem um pouco de loucura.”
(Nise da Silveira)
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Eu fui uma criança controlada e controladora que tinha medo de enlouquecer. Sim, eu subia em árvores, brincava na terra e tinha amigos entre as crianças da rua e da escola. Mas tinha medo de enlouquecer. Um medo que crescia na medida do crescimento do meu corpo e da minha consciência sobre o funcionamento do mundo. Eu nunca tive medo da loucura. Tinha medo do que faziam aos doidos. E aos desajustados. E aos questionadores de qualquer natureza. Eu tinha medo do cárcere que sempre foi imposto aos que pensam e agem diferente do que se espera.
Corta para 2006, quando eu me vi sozinha, pela primeira vez em Salvador, e decidi seguir um bloco de carnaval temporão que desfilava pelo Pelourinho. Um rapaz de branco se aproximou de mim e perguntou se eu queria entrar dentro do cordão. É claro que eu queria. Ele então fez um adendo: “São pacientes psiquiátricos. Está tudo bem para você?”. Devolvi a pergunta: “É um problema se eu for junto?”. Ele sorriu e levantou a corda para mim. E eu pude ser tão espontânea quanto poucas vezes fui.
Uma vez um amigo, de quem a vida me afastou mas eu jamais deixei de amar e admirar, ao ver meu estado de atrapalhação ao retornar de uma reportagem no Instituto Raul Soares – um hospital psiquiátrico em BH – me disse assim: “A gente não deve nunca achar que está do lado iluminado da vida enquanto os outros estão na sombra. As pessoas transitam entre esses dois mundos”. Eu ouvi calada e não tive coragem de dizer a ele que nunca estive do lado iluminado do mundo. Eu ainda tinha medo do que faziam aos doidos.
Domingo passado, fui visitar a exposição que está montada no CCBB de BH, sobre a vida da Dra. Nise da Silveira. Fiquei profundamente emocionada e me lembrei de outras vezes que visitei instituições psiquiátricas e de como sempre me doeu a maneira como tratavam os doidos. Meu companheiro também se emocionou – que alegria é a gente todos os dias entender que não cruzou os caminhos à toa – e contou que gosta de tocar violão para se equilibrar. “Ela (Nise da Silveira) estava certa: a arte regula a gente”, ele comentou. Regula. A arte e os bichos regulam a gente. Dra. Nise estava muito, muito certa. No entanto, foi tratada à maneira como tratam os doidos. Ainda tratam.
Daniela,
Os realmente loucos, o que quer que isso seja, não têm medo de enlouquecer.
Daniela, que rima com aquarela, e traça um texto tão cheio de enloucrescimento, saiba que em algum pontinho desse brasilzão cheio de doidices alguém leu essas bem-traçadas linhas e se encheu de alegria ao poder lê-las.
Então, pegou um pedaço de nuvem, moldou-o e , aproveitando uma brisa passageira, lhe envia uma chuva à guisa de afago.
“A gaivota determinada mergulha na água verde. Há um tempo para o pássaro e um tempo para o peixe. E dentro e fora do homem um tempo eterno de solidão”. Desde que li isso, no começo da adolescência, nunca mais fui o mesmo e me perco vago e deliro por entre os bichos e os homens, a água e o ar, o tempo e as eras, a lucidez e a vertigem. Nao sei se é de Paulo Mendes Campos.