O Tio do Pavê

Tadeu Duarte
tadeu.ufmg@gmail.com

Toda família brasileira tem seu Tio do Pavê. Aquele tio bonachão, ressentido por ser classe média, que adora contar suas piadas repetidas e fora de época e é capaz de estragar qualquer comemoração em família.

Presença inconveniente garantida nas festas, principalmente Natal, ele sempre causa constrangimento com seus comentários desnecessários e invasivos. Existe Natal sem Papai Noel e até sem o Especial do Roberto Carlos, mas, sem o Tio do Pavê, jamais.

O Tio do Pavê é homem de poucos amigos e vida social. Por isso faz questão de estar presente em qualquer evento que lhe proporcionem as duas coisas que mais gosta: palanque e boca-livre.

Já não é de hoje que meu Natal só é possível longe da minha família. Como diria Jaiminho, filósofo de Chaves, prefiro evitar a fadiga. 

Sei dos traumas causados pela exposição desnecessária à radioatividade do fanatismo religioso e político de gente burra. Zero remorso em não confraternizar com pessoas paleozóicas. Com as devidas exceções; tias, tios, primos, primas e seus maridos reaças e filhos cabeçudos: vão ver se estou na esquina.

Já nas festas de família da minha namorada, eu ia todo pimpão. Por mais escroto e reacionário que, por ventura, fosse o tio do pavê da família dela, eu simplesmente não tinha ranço por não saber quem era o quê.

Desconhecendo que o sujeito tem uma suástica no lugar do coração, sou capaz de trocar algumas palavras amenas e até sorrisos, desde que eu esteja bêbado e de barriga cheia.

Foi pensando assim que no último Natal me lasquei mais que patriota nas sentenças do Xandão, quando conheci o legítimo Tio do Pavê. Amigos, posso afirmar que o folclórico existe e que sua má fama tem justa razão. Vi de perto a piada sem graça materializada em carne, osso e cara de bebê gigante.

Ao chegar na casa da tia Poodle, sua ex-esposa, já me deparei com a figura. Ele estava vestido com o uniforme clássico do tiozão: blusa pólo listrada com um cavalinho bordado, sapatênis careta com meia soquete e bermuda cáqui marcando as bolas. Sim, o Tio do Pavê é literalmente um homem de saco cheio e caído. 

Barbeado, tem um aspecto criançudo. E usa aquele clássico corte de cabelo à moda barbearia de rodoviária, feito Anthony Garotinho, que ilustra esse texto por sua enorme semelhança com o desquerido em questão. 

O maior perigo do Tio do Pavê é ser um tipo tão comum que passa como alguém normal. Um observador menos atento é até capaz de acreditar que ali há um ser humano, talvez.

Ao me cumprimentar ele já deu seu cartão de visitas: um bafo tão forte de merda defumada que visualizei dentro de sua boca um rinoceronte de costas, abanando o rabinho. 

Enquanto o almoço não estava pronto, começamos a beber vinho e comer uns birusquetes. Até aí eu estava de boinha, iludido e desarmado com a presença do Boquinha de Cocô, que, a princípio, me parecia apenas um sujeito sem noção e higiene bucal, carente e desejoso por aparecer. 

Foi quando o Boca Fedeno começou a me fazer perguntas pessoais indiscretas, que nem meu sogro fez, que me dei conta de que não estava em um almoço de Natal, e sim no Arquivo Confidencial do Faustão misturado com o programa Casos de Família, do SBT.

Boquinha de Cemitério tinha encontrado em minha discrição e moderada timidez a escada perfeita pra pagar de fodão. 

Questionamentos sobre a minha vida financeira, pessoal e afetiva (que de fato é avacalhada, mas, ainda assim, privada) saíam daquela latrina com a mesma facilidade que a Familícia dos Infernos fez rachadinha por décadas em seus gabinetes sem ser contida pela justiça.

Falar da minha vida pessoal com gentinha enxerida foi mais constrangedor que meus exames de colonoscopia e próstata juntos. E ver minha namorada rindo e fornecendo ainda mais informações minhas, de modo a piorar meu momento já trágico, é uma mágoa digna de se guardar no freezer.

Estava já conseguindo desestimular aquele filho de coito interrompido a não me incomodar quando, de repente, aparece Tia Poodle pra fazer coro e seguir com o infame interrogatório. Se ela tivesse com seu visual a mesma atenção a mim dispensada, certamente ela não teria aquele corte de cabelo canino digno de seriado americano dos anos 80. 

Ainda hoje não entendo como aquele casal perfeito se separou. “Um gambá cheira o outro”, já dizia vovó.

Enquanto meu pouquíssimo espírito natalino escorria de nervoso em meu suor, Boca Morta passou a direcionar sua metralhadora fecal aos outros presentes. Sobrou até pra minha sogra, que foi chamada de “cuidadora de idosos”, por ter se casado com um homem mais velho e, atualmente, com problemas de saúde. Seu marido, o idoso em questão, que também adora se expressar de forma “politicamente incorreta”, pra dizer o mínimo, ficou calado dessa vez. 

É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. 

Até o ex-marido da minha namorada também não foi poupado. Sei lá, ainda que ausente, ser esculachado merecidamente pelo Boca Infame deve ser uma nódoa eterna. Confesso que sorri, não tenho a menor ética pra rir de quem merece.

O Clima tava mais pesado que o Gordão da XJ quando, mais adiante, ele começou a ensaiar um assunto político e, mesmo com esse tema, surpreendentemente, o clima arrefeceu.

Ganha uma camisa da CBF, um CD do Gusttavo Lima, uma caixa de Cloroquina e um vale-compras na Havan o leitor que primeiro adivinhar em quem o Boquinha-de-Matar-Urubu-no-Voo votou.

Nunca falha.

Tio do Pavê me fez ter saudades da minha família, pelo menos lá já mapeei os desagradáveis e não sou pego de surpresa. 

No próximo dezembro vou acampar sozinho na Serra do Curral e só desço de lá depois que se apagarem todas as luzes de Natal. 

John Lennon estava certo, o sonho acabou.

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