A foto do ano, horror que nos assola

Sandra Belchiolina

A foto do ano (2024) prêmio concedido pelo concurso World Press Photo foi de uma mulher Palestina abraçando o corpo de uma criança. É uma premiação do fotojornalismo, aquele em que a imagem fala por si só, retratando a realidade. Click registrado por Mohammed Salem da agência de notícias Reuters. Quando a vi na internet, a visão do horror me trouxe memórias e traumas infantis. De imediato me veio a canção de Chico Buarque: “Pedaço de mim”:
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”

Não falarei aqui dele, mas daquilo que a foto pôs a caminho. Quis saber mais sobre essa horrível e bela imagem e outras memórias de filmes e o fato de ficarmos assolados com esse Real, que surge também de tragédias. Para não sucumbirmos, fazemos algo com isso que é insuportável. Por hora, cheguei nesse texto da premiação que tomou as redes sociais nesse final de abril de 2024.

Primeiro falo da foto onde aparece a jovem Abu Maamar, de 36 anos, de cócoras e numa posição fetal, enroscada com sua sobrinha Saly, de 05 anos, como se pudesse envolvê-la e protegê-la de sua própria morte. A criança e mais quatro familiares foram mortos quando um míssil israelense atingiu sua casa. Maamar estava no necrotério do hospital de Nasser em Khan Younis, sul de Gaza, quando se ouviu seu pranto. Assim Salem o descreve: “momento poderoso e triste que resume o sentido mais amplo do que estava acontecendo na Faixa de Gaza”. A Guerra entre Hamas e Israel já levou mais de 33 mil palestinos a morte, dentre muitas crianças e mulheres.

Imagens petrificantes, meduzantes, se assim posso denominar, lembrando do mito da Medusa que petrifica quem a olha e enxerga o horror que ela porta. Não há palavras suficientes para falar desse desamparo e miséria humana. E, como sempre, aquilo que nos faz elaborar e mexe conosco, que não sai de nossas cabeças e nos exige um trabalho mental leva a outros caminhos para absorver o que veio de forma inesperada. Foi isso que ocorreu comigo.

A princípio lembrei-me de um filme que retratava o horror de outra guerra, a do Afeganistão. Longa de 2014, norueguês — Mil Vezes Boa Noite, com a francesa Juliette Binoche está no papel principal. Representa Rebecca, que é uma das melhores fotojornalistas do mundo. A película aponta dois conflitos — o das mulheres bombas em Cabul – Afeganistão, e o outro lado na África, para onde Rebeca faz uma viagem com a filha. O que era para ser seguro, mas no momento em que estão no acampamento de refugiados, ele é atacado. Filme que retrata conflitos mundiais, posição de mulheres e ideais religiosos/políticos e o próprio conflito de Rebecca. Ela é questionada pelo marido que aponta a angústia das filhas de perderem a mãe. Ele se opõe ao seu posicionamento profissional e de contestação diante de uma sociedade que não se importa com a miséria de outros povos. Filme lindo que nos deixa impactados com cenários de guerra, escolhas e aquilo que faz sentido para uma mulher. Ela luta pelo seu desejo que vai além da sua maternidade e do seu lar. Há um diálogo da filha Steph com Rebeca ao qual ela pergunta para mãe como ela foi ser fotógrafa de guerra. A resposta: “eu tinha muita raiva”, queria que o mundo se chocasse com a realidade não vista, enxergasse a miséria de outros povos, que as fotos “deslocassem” aqueles que permanecem no conforto de uma sociedade pacífica, prósperas e no aconchego de seus lares. Desejava que as pessoas engasgassem com seus cafés da manhã quando vissem as imagens. Assim sendo, assumiu uma postura de suma denúncia daquilo que é impensável, uma realidade assombrosa.

Mil Vezes Boa Noite é encontrado em plataformas stream, vale muito a pena ver ou rever. Há muito que falar desse filme. Foi tentando revê-lo que encontrei duas outras películas com a mesma temática: The Bang Ban Club, no Brasil com o nome de Repórter de Guerra, que retrata a vida de quatro fotojornalistas, filme baseado em história real. Falarei dele em outro post. Recentemente estava num seminário onde uma das fotos de um dos fotógrafos foi apresentada. Imagem polêmica que rodou mundo e provocou danos insuperáveis em seu autor. O outro é o recém-lançado Guerra Civil, filme distópico que tem o ator brasileiro Wagner Moura como protagonista. Sua temática também aborda o fotojornalismo.

O Real que nos assola é algo indizível — assim falava Lacan, mas tem algo a ser transmitido e o horror é um retrato que pode ser bordejado. Com a “raiva” de um fotógrafo algo pode ser produzido em termos de conciliação, conscientização, humanização. Assim desejam, assim desejamos!

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