Uma esquina vazia

Peter Rossi

Acabei de receber a notícia que o Marquinho, morador de rua, que ficava na esquina da Rua Alvarenga Peixoto com Rua São Paulo, faleceu essa madrugada. Foi espancado ontem. Ninguém dá notícia de quem fez essa atrocidade. Até o presente momento, nenhuma das câmeras espiãs deu notícia de nada.

Veio a polícia e ele foi internado no hospital. De lá não saiu, os ferimentos e contusões foram extremamente graves. Quem fez “o serviço” não poupou esforços, utilizou requintes de crueldade.

Marquinho não está mais entre nós. Gente boa, embora algumas vezes, movido pelo excesso de cachaça, importunava. Mas, nada mais que isso. Quem de nós nunca importunou outra pessoa?

Pois é, Marquinho vivia sob a marquise envolto em trapos e caixas de papelão, um script infelizmente repetitivo. A sociedade impõe regras difíceis e nem todos conseguem. Marquinho era um deles. Vivia à margem da vida. Se era ou não feliz, seu sorriso não denunciava, até porque não tinha dentes.

Mas Marquinho tinha um olhar que não era exclusivo de pedinte. Sorria com os olhos sempre que recebia um agrado.

Não era completamente sozinho. Nós, moradores do entorno, sempre cruzamos com ele, às vezes um trocado, outras uma cachaça, outras um aceno.

E não me venham reprimir pelas cachaças que paguei pro Marquinho. Não foram poucas, aliás. Se isso lhe fazia feliz, que assim sempre fosse. Penso que não me cabe o juízo de valor do motivo pelo qual ele morava na rua. De uma forma ou de outra, ele devia ter lá suas razões. Das oportunidades que a vida desnudou ele agarrou aquela, e assim foi. Era invisível, como tantos são.

Na ausência do Marquinho, quem ficou órfão foi o Pirata, seu amigo fiel. Um cachorro sem raça definida, com o corpo branco e alguns pelos negros a circundar os olhos, daí o apelido.

Quem me contou sobre a morte do Marquinho foi justamente o Pirata. Seguindo para casa, para almoçar, ouvi o choro dele. Estava no mesmo lugar de sempre, enrodilhado, mas não cansava de gemer.

Perguntei ao garçons do restaurante em frente o que estava acontecendo, e logo percebi que todos estavam a cuidar do animal.

– Marquinho morreu, doutor! E o Pirata não para de chorar.

A cena me comoveu de forma especial no exato momento em que recebi a notícia. Tentei pegar o cachorro, mas ele não se permitiu a vir ao meu colo. Deixei onde ele estava, para quê molestá-lo ainda mais? Fiquei observando, por alguns minutos, Pirata vivenciar o seu luto.

Algum tempo depois caminhei até a portaria do meu prédio, não mais que trinta metros do local. Entrei. Apertei o botão do elevador e quando já estava a subir, encasquetei que tinha que voltar.

Voltei e lá estava o Pirata, do mesmo jeito. Resolvi lhe dedicar alguns minutos, partilhando da sua dor.

Não tenho a mínima condição de trazer o Pirata para viver comigo, moro em um apartamento, e ainda assim, sozinho.

Mas estava realmente sensibilizado com tudo, com a morte do Marquinho, com a solidão do Pirata. Fiquei a pensar se a história se invertesse, se fosse Marquinho quem perdera seu amigo. De cá para lá, ou de lá para cá, a equação é a mesma, absolutamente triste.

Me ofereci, então, para apadrinhar o Pirata. Não poderia ser seu tutor, mas, lado outro, poderia colaborar para sua manutenção. Foi o que fiz, me comprometendo a arcar com os custos de ração do amigo canino.

Foi nesse momento que tomei conhecimento de que existe uma senhora que banca os custos de banho, vacinas e remédios do Pirata.

Segui o mesmo rumo, de volta pra casa. Não pude deixar de pensar em como perdemos oportunidades. Tão melhor seria se eu apadrinhasse o Pirata com o Marquinho ainda vivo. Com certeza ele seria mais feliz com o apoio ao seu animal de estimação.

Mas nem sempre acordamos a tempo e, verdadeiramente, sempre chegamos atrasados. Cuidamos de reparar, quando poderíamos evitar.

A esquina continua lá. Pirata vai encontrar novo lar, até porque as pessoas estão mesmo empenhadas nisso. Marquinho se foi. Ficou uma bolsinha de couro preto e dentro dela todos os seus documentos. Junto deles, a carteira de vacinação do Pirata. O cãozinho era bem cuidado, Marquinho, talvez não!

 

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