Um Pequeno Milagre

Rosangela Maluf

Seu Nico reclamava sempre de uma dor de cabeça, “em caracol”, que apesar de não muito intensa nem muito frequente, era de uma chatice sem tamanho.

Como assim? Perguntava Nandinho, seu único filho.

Ó, fio… começa com uma dor na nuca, vai rodando pelo pescoço. Chega nos dente. Para. Depois roda de novo até perto das orêia. Caminha de novo, vai rodando, rodando, incomoda o nariz. Parece que vai me matá de tanto que coça. Então coço, esfrego pra lá e pra cá.

A danada da dor continua rodando. Vorta lá atrás, na cabeça, vem rodando, dói nos ói. Num adianta piscá. Dói e vorta pra trás da cabeça. E é aí que tá o mistério: a dor vem subino, subino, subino até chegar no cocoruto. Quando para no arto da cabeça, o trem isquenta que nem dá pra ispricá. Além do calor, parece que tem um coração batendo lá em cima. Vixe, que é ruim demais da conta.

Não era a primeira vez que o Seu Nico reclamava da mesma dor, relatando os mesmos sintomas. Por várias vezes Nandinho havia levado o pai até o SUS e marcado consultas com clínico geral, neurologista, geriatra, tudo que era possível marcar. O SUS funcionava bem em Redentor, ainda que houvesse algum tempo de espera para o atendimento. E foi na fila para marcar uma nova consulta que Nandinho ficou sabendo de um trem novo: uma acupunturista que estava atendendo numa clínica da cidade. 

Chegou em casa, abriu o Google e entre informações e vídeos ficou sabendo bem mais sobre: o que era aquilo, para quê servia, quais os casos mais indicados e os relatos de pessoas que haviam melhorado consideravelmente usando as tais agulhinhas. Ele ficou tão interessado no assunto que leu diversos relatos e artigos a respeito.

Naquele dia, Nando se organizou, deixou sua manhã bem programada. Seu Nico tomou banho, colocou uma roupa boa, trocou as botas por sapatos e lá se foi com o filho para a sessão de a-cu-pun-tu-ra. – Trem difícil de falá, sô! Pensava alto enquanto prendia o cinto de segurança, ao lado do filho-motorista.

A pequena e branquinha Dra. Liu era neta de japoneses. Nascera em São Paulo e na faculdade conhecera um mineiro, médico também, cujo pai era fazendeiro em Montes Altos, cidade grande, pertinho de Redentor.

Com duas amigas, também médicas, abriram uma clínica. 

Assim, uma vez na semana ela deixava a cidade grande e atendia naquela cidadezinha, distante apenas meia hora de carro. Gostava de dirigir, apreciando a paisagem tão diferente de tudo que já conhecia e ainda por cima fazendo o que gostava, feliz por cuidar, principalmente, de idosos.

A doutora quis saber de um tudo e após duas horas de perguntação começou o ritual. Desabotoa a camisa. Deita certinho. Vou marcar os pontinhos a serem espetados.

Em alguns pontos, aqui na cabeça, Seu Francisco, usarei uma fita métrica pra medir as distâncias. Tudo tem que ficar certinho. O senhor não vai sentir nada, fica tranquilo. Só uma espetadinha e não é em todos os pontos.

Deitado confortavelmente na maca, ar condicionado em temperatura agradável, musiquinha “daquelas que dão sono”, teve início a colocação das agulhas nos pés, pernas, mãos, braços, ombros, cabeça. E o Seu Nico feliz: nem dói!

Quando Nandinho deixou o pai, já com todas as agulhinhas devidamente espetadas pelo corpo todo, teria em torno de meia hora para fazer algumas coisinhas e voltar para buscar o Seu Nico.

Como era a primeira vez do paciente, a doutora avisou que fecharia a porta para que ele relaxasse melhor, que ficasse tranquilo e a cada cinco minutos ela passaria para ver se estava tudo bem com ele.

Passados pouco mais que cinco minutos, a Dra. Liu entrou na sala de atendimento e não acreditou no que viu: Seu Nico havia se deitado de lado, dobrado os joelhos. Tinha dobrado os braços, colocado as mãos unidas sob o rosto e dormia. Roncava. Meu Deus e agora? Com todo autocontrole japonês e a calma de seus ancestrais, ela fechou novamente a porta e pediu ajuda a dois outros médicos que também atendiam naquele momento. 

Foram os três para a salinha do lado.

O que fariam? Com receio do que as agulhas pudessem fazer, a Dra. Liu pediu ajuda para que recolocassem, com todo cuidado, o paciente em decúbito dorsal (de barriga para cima). 

Lentamente, viraram o Seu Nico. 

Delicadamente colocaram os seus braços ao longo do corpo. Constataram que estava tudo bem. Saíram da sala deixando a Dra. Liu com seu paciente e suas agulhas.

– Seu Francisco, tudo bem? Alguma dor? Algum desconforto? Algum incômodo em algum lugar determinado? Então, Senhor Francisco, o senhor fique calmo que vou retirar as agulhas. Depois, vou recolocar e ficarei aqui do seu lado para que o senhor não se mexa, tá bom? Não pode se movimentar tendo agulhas espalhadas pelo corpo. Fique bem quietinho.

Lentamente, ela retirou as agulhinhas. Apenas duas ínfimas gotinhas de sangue, em uma das pernas. Uma por uma as agulhinhas foram retiradas. Suspirou aliviada. Espetou novamente, com toda calma, uma por uma. Recolocou o Seu Nico na maca. Pegou um banquinho e ali ficou até que o relógio despertasse, vinte e cinco minutos depois.

Quando Nando chegou, Seu Nico já estava todo prosa conversando com a secretária da clínica. O filho perguntou como foi.

 – Um trem à toa, uma bobajada só. 

 – Mas, pai, o senhor sabe que teremos que repetir por mais sete semanas até que o tratamento comece a fazer efeito, disse Nando. Já expliquei tudo pro senhor. Já falei como é que funciona e o senhor entendeu tudinho!

Na outra semana, no dia da outra sessão, Seu Nico amanheceu bravo. 

Disse que não iria, que já tinha sarado, que não tivera nada naquela semana e que essas coisas são mesmo só para tirar dinheiro da gente.

Nando resolveu deixar para lá. Não iria insistir mais. Já estava cansado da teimosia do pai.

Seu Nico deu graças a Deus, não queria mesmo ter que trocar de roupa e calçar sapatos de festa. Voltou à velha rotina de sempre. Roupa boa e sapato preto só mesmo aos domingos para as missas das nove horas, na igreja matriz de Redentor. 

Depois, o almoço em casa com a família reunida ao redor de uma mesa farta, onde não faltava o arroz de pequi, o frango caipira e outras delícias que ele comia com vontade. E a cachacinha Saudade, um copinho só, para abrir o apetite. Depois o soninho da tarde, o acordar com o cheirinho bom do café passado na hora. Ô, vida boa!

E a dor de cabeça? Ah, essa aí nunca mais apareceu!!!

*
Curta: Facebook / Instagram

10 comentários sobre “Um Pequeno Milagre

  1. Rosangela, adoro seus textos. Carregados de brasilidade nos levam de volta ao nosso interior de Minas e trazem de volta doces lembranças. Não existe leitura melhor para as manhãs de domingo. Parabéns e obrigada amiga pelo prazer que nos proporciona.

  2. Oi Zanza, realmente seus contos e crônicas são uma delícia de se ler. Verdadeira higiene mental e nos trazem boas lembranças sempre.
    Eu tbm já passei por sessões de acupuntura na lombar e nos joelhos. E diferente do seu Nico, para a lombar, claro, eu tinha que me deitar de bruços para receber as benditas agulhinhas. Eu falava com o Mahé que eu me sentia como um teclado, enqt o acupunturista “ me espetava”.
    E que bom que o seu Nico ficou livre da “ danada da dor”!

  3. Mestra!Como gosto de seus textos,mas este relatou minha história de exata dor de cabeça que começa como a do seu personagem…e tb a trato com acupuntura!Me identifiquei com a diferença que fico aguardando o dia de retornar para meu momento de agulhadas e relaxamento!!!

  4. Muito gostoso de ler o Sr Nico.
    A história é linda., aproveitar e fazer acomputura para a danada de minha dor do joelho que está muito ruim
    Fui lendo com muita curiosidade ,a minerise espetacular.
    Obrigada por salvar o meu domingo em Ouro Branco

  5. Concordo com todos comentários anteriores. Seu Nico não é nada diferente dos velhos das outra regiões de Minas. Realmente é muito verdadeiro e, por isso mesmo, bom de ler. Seu Nico reedita muitos velhos conhecidos. Delícia, menina.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *