Autoretrato. Fonte: Pixabay

Autorretrato

Autoretrato.  Fonte: Pixabay
Autoretrato. Fonte: Pixabay
Daniela Piroli Cabral
danielapirolicabral@gmail.com

Eu já me importei com as taças para água e vinho, com o móvel de laca, com a cozinha inox, com o índice das bolsas de valores. Já me importei com a combinação das cortinas, com a mesa posta. Já me importei com o cabelo liso, com as unhas feitas e com a opinião alheia.

Já me importei em planejar, preencher planilhas, seguir mapas. Já me importei em causar boa impressão, em ser obediente, a garota exemplar. Já me importei em mostrar conhecimento. Já me importei em ser outra que não eu mesma. Já me preocupei em ter certeza de quem era.

Já me importei em ser amada e reconhecida. Já me envergonhei com elogios e tive medo de envelhecer. Já fui espetacular. Já carreguei o mundo nas costas, já suportei sofrimentos, tolerei inseguranças.

Já me importei em ser extrovertida e esconder a minha timidez. Já preocupei-me em ser alegre e em demonstrar felicidade até descobrir que ela se esvai no instante que se vive. Já quis ser inabalável. Já passei ovos emprestados pelo muro. Já roubei tacos. 

Já me importei em economizar dinheiro, em trabalhar muito, em ser eficiente. Mas não me importo mais. Aprendi que a bicicleta é sempre melhor que o dinheiro. Mais vale um gosto que um tostão no bolso.

Já chorei sozinha. Já chorei e cozinhei. Já chorei e li. Já chorei e trabalhei. Já estive em débito. Já sorri sem motivo.

Já fui preta e já fui branca. Morena e loira. Já tive olhos azuis. Já fui bagunceira e também organizada. Já arrumei a mala. Já me preocupei com vírgula, aspas e reticências.

Hoje gosto de palhaços, de panelaços. Hoje me importo com as conversas sem função, sem compromisso. Me importo com as experiências, com as sensações, texturas e sentidos. Ando descalça. 

Hoje me importo mesmo com a inutilidade das coisas, com os silêncios, com os afetos possíveis. Gosto mesmo de requeijão de raspa e café coado. Hoje me importo com os desperdícios. Faço torradas de bolo e de pão dormido. Apago as luzes e ando no escuro de olhos fechados.

Hoje descobri que o tempo é meu, que gosto do que é rascunho, vazio, incompleto. Descobri que o querer não para, é fonte vida. Mas confunde e cansa. 

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