No supermercado

Peter Rossi

 

O final do dia não prometia grandes emoções. Ao contrário, tinha que ir ao supermercado. Essa era uma tarefa que antes amava, mas que, hoje em dia, não me é mais tão aprazível. Sempre penso nas sacolas pesadas e na coluna a reclamar. Moro sozinho, não tenho como compartilhar essa dor.

Enfim, me enchi de coragem e parti para as compras. Voltava de viagem e minha auxiliar mandara uma extensa lista de gêneros de primeira necessidade.

Estacionei o carro, peguei um carrinho ainda na garagem, até como desculpa para subir de elevador até o supermercado. Na parte de cima existiam carrinhos também, mas tinha que justificar o impulso tecnológico do ascensor.

Cheguei até as gôndolas e, no afã de atrasar ao máximo minha próxima vinda, busquei nas estantes as maiores embalagens de amaciantes, detergentes, desinfetantes. Não pensei no peso, apenas no adiamento em relação a próxima compra.

Terminada a lista, continuei a passear entre os corredores, observando as pessoas e, de quando em vez, as prateleiras. Gosto muito de observar as pessoas, mas essa é uma história que me reservo no direito de contar em outra ocasião. Mas, juro, contarei!

Acabei comprando um pouco aqui, outro acolá, até que cheguei ao caixa. Invariavelmente procuro os caixas destinados aos sessenta plus. Exerço o meu direito e, confesso, fico injuriado quando percebo que um jovem quer furar a fila. Não foi o caso, dessa vez.

Passei os produtos e acabei me vendo na obrigação de adquirir uma nova sacola retornável. Comprara demasiado. A essa altura, me lembrei das dores na coluna… ai, ai.

Como sempre faço, puxei papo com o senhor que estava a cobrar no caixa. Meu pai sempre me ensinou que em toda conversa, por mais pueril que seja, sempre aprendemos alguma coisa. Eu, incorporando eternamente o papel da Emília, de Monteiro Lobato, sempre fiz uso desse ensinamento. Me dei mal em diversas ocasiões, mas essas, também, são outras histórias a contar.

Não foi o caso. O senhor foi atencioso e responsivo. Ao meu “boa noite” sorriu com dentes amarelos. Era um homem de seus quase setenta anos. Observei que tinha uma entonação diferente ao pronunciar as palavras. Além da minha audição defeituosa, o amigo tinha uma pronúncia pouco palatável. Foi quando me dei conta de que não era um brasileiro.

– O senhor não é brasileiro, pois não?

– Não! Sou do Peru.

Não tinha entendido o que me dizia e perguntei novamente. Ele parou o que estava fazendo e com toda calma do mundo me disse: “nasci num país que se chama Peru!”

Me dando conta do que falara, fui logo dizendo que adorava aquele lugar. De fato, conheço o Peru e, aos meus amigos, sempre digo que é uma viagem inadiável. Nosso continente tem várias histórias, porém o Peru é especial. As comidas, maravilhosas e eu tenho esse grave defeito, se assim posso considerar, meço o país pela qualidade de sua comida! Nesse ponto, o Peru é nota 10,5!

Não falo aqui da energia, da história, da mística daqueles rincões. Se fosse considerar tais aspectos, essa crônica não caberia em si! Falo das pessoas, das concessões, dos reinícios, dos aprendizados. Um povo culturalmente séculos à frente dos demais se submetendo à pólvora de grotescos, bárbaros que julgavam ser os vanguardistas. Ai meu Deus, vai aí uma outra história … Conto depois minhas impressões.

Voltando ao caixa do supermercado e seguindo o mesmo script, perguntei o seu nome.

– Christian, me chamo Christian!

– Ora, mas isso não é um nome peruano.

– E o senhor, qual o seu nome?

– Peter.

– Há de concordar que também não é um nome brasileiro.

Ficamos os dois, por alguns segundos, a admirar nossas divergências!

Observei que as rugas na pele de Christian demonstravam sofrimentos excessivos e não me contive: perguntei o que fazia em nosso país. Observei que nenhum velhote ou velhota estava a esperar e relaxei, queria ouvir todas as explicações. A dor de carregar as sacolas viria depois. Não queria pensar nisso naquele momento. Sempre fui curioso e exerci a minha curiosidade ao extremo.

– Vivo no Brasil há 42 anos! Vim parar aqui num momento de turbulência em minha família. Não podia mais viver na minha terra.

Minha vontade era de perguntar por que não escolhera outro país de língua castelhana, optando pela única pátria que fala português na América. Mas a pergunta quedou amarrada na garganta, interrompida pela fala do meu amigo.

– Pensei muito antes de escolher. Não tenho qualquer formação, tanto que aqui estou empurrando mercadorias numa esteira rolante e apertando botões de uma caixa registradora. O Brasil sempre me pareceu uma terra de oportunidades …

– É feliz Christian? Perguntei

– Às vezes sim, Peter.

A essa altura, éramos íntimos.

– Às vezes não é muito pouco?

– Não! Às vezes é demais até.

Num primeiro momento não tive a competência para digerir aquelas palavras e até hoje me penitencio por não ter agradecido ao Christian pela lição.

– Somos o que somos! Ele continuou …

– Não tem saudade do seu país? Voltou lá alguma vez?

Percebi que minha pergunta não lhe fizera bem. Sua face enrubescera.

– Senhor Peter. Ele agora adotava um tom mais formal.

– Voltei uma vez só, hoje vejo meu país pela televisão.

Tive vontade de perguntar se deixara família, o que seria óbvio. Me contive e num espasmo de escárnio pensei em responder que também via meu país pela televisão, através de lentes opacas e distorcidas.

– Adoro o seu país, Christian! Quanta história, quanta tradição. Me apaixonei por Lima, pelo Vale Sagrado.

– Lima, não conheço, Peter. Fui uma vez só e o avião me tirou rapidamente dali. O seu país também não conheço. Cheguei a São Paulo e um amigo me recomendou que viesse logo para Belo Horizonte. A bordo de um ônibus vim. Aqui estou.

À essa altura já não tinha mais assunto, mas percebi que ele queria me contar alguma coisa. Olhando mais uma vez para trás, percebi que apenas uma senhora esperava a sua vez. Fiz um sinal tentando dizer que logo terminaria e voltei a ouvir Christian.

– Sabe o que penso? As pessoas são do mundo, senhor Peter! Elas até trazem algumas características, falas, conceitos …

E preconceitos, pensei eu.

– O Brasil me aceitou. Hoje, aos 72 anos, ainda trabalho. Tenho muito orgulho de estar aqui, atendendo ao senhor. Não consigo reunir um dinheiro pra voltar ao Peru. Pra falar a verdade, nem sei se quero. O que mais gosto é ir ao cinema na minha folga, passear no Parque Municipal e observar a felicidade das pessoas. Falo a verdade, sou muito feliz aqui.

Passei o meu cartão e paguei a conta. Com a alma embargada não sabia o que responder. Mas nem precisava. Christian me entregou a nota e com um sotaque inaudível àquela altura, por conta de emoção, só conseguiu me responder:

– Volte. Volte aqui, senhor Peter. Volte sempre. Vamos falar mais sobre o meu pobre país. Fiquei muito feliz, me fez viajar.

Não sabia o que dizer e nem se deveria mesmo falar alguma coisa. Coloquei as sacolas no carrinho, mais uma vez pensando na dor da coluna. À falta de argumentos, me calei. Só agradeci.

Apertei o botão do elevador e desci até a garagem. Enquanto colocava as malditas sacolas no carro pensei no que poderia responder. Liguei o carro e me dirigi à saída. Qual não foi minha surpresa ao ver que na rua estava Christian a fumar um cigarro, em lágrimas.

Desci do carro, pouco me importando se algum outro vinha atrás. Me permiti um abraço e um beijo no rosto. Enchi os pulmões e com toda coragem lhe disse:

– Parabéns, Christian, você é um vencedor!

– Nada disso, senhor Peter. O senhor que acalentou a minha alma, e me fez ver que a ausência da minha terra amada é maior que imaginava. Mas, pensando bem, perdedor também não sou. Sou feliz, senhor Peter, pode acreditar!

Eu acreditei e entrei no carro. Fiz um aceno, me prometendo que voltaria a falar com Christian, queria saber mais sobre a sua felicidade. Me dei conta que também estava feliz, me esquecera completamente das pesadas sacolas que haveria de ainda carregar.

7 comentários sobre “No supermercado

  1. Belo texto! Comovente, solidário. Me lembro de um caixa estrangeiro no supermercado aqui do bairro, que certamente não chegou aos 60…. se observarmos alem do valor final à pagar, vamos perceber que temos vários Christians por aí.

  2. Ser feliz… quando paramos para observar o outro, a nossa dor diminui e a nossa consciência descobre como somos favorecidos.
    Crônica especial!

  3. Ser feliz… quando paramos para observar o outro, a nossa dor diminui e a nossa consciência descobre como somos favorecidos.
    Crônica especial!

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