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Quando um dia se finda

Silvia Ribeiro

Quando um dia se finda.

Com ele se vão as nossas perspectivas, os sonhos que preparamos, as histórias que costuramos, as pontes que atravessamos, a clarividência dos nossos erros, e o sorriso que ele nos trouxe.

Vão também as lutas que deram certo, o ócio que por um motivo qualquer se fez necessário, as memórias que serão encaixotadas, e provavelmente as tristezas e frustrações que ele nos fez experenciar.

Sem falar daqueles descaminhos que não fizeram jus à nossa entrega, aqueles lobos em pele de cordeiro que surgem não sei de onde, aquelas promessas que se acovardaram sem um mínimo de critério. E todos aqueles talvezes que morrem sem direito a um último pedido.

Um legado de aprendizado e as suas marcas pontuando cada segundo do que fizemos com ele.

E então vem a vida com um tal de “amanhã” e nos dá colo.

Chega meio sem graça, manhoso, um tanto quanto ressabiado, e sem saber como será recebido.

É íntimo das estrelas, embora algumas vezes venha molhado de chuva, aprecia um bom café, e tem reticências no canto dos olhos.

Mas o que ele gosta mesmo é de se sentir como o sol.

Parece o doutor do tempo com anestésicos cicatrizando as nossas feridas, um cientista capaz de descobrir o nosso interior, um velho sábio nos ensinando o poder das ervas, ou um acessório que nos enfeita por dentro.

Aquela música chiclete que gruda nos nossos ouvidos, aquele cheirinho de bolo que acabou de sair do forno, um moletom surrado nos aquecendo, ou o último pedaço de chocolate esquecido no fundo da gaveta.

O pula corda, a bola, o carrinho, a revista em quadrinhos, a boneca, o rouba-bandeira, a queimada, o pique-esconde, as cirandas, e o esperado par da quadrilha.

A tia da escola, a hora do recreio, a nota azul, o bonequinho doce, os sacis, as Pollyanas, os príncipes, as quermesses, as gincanas, e o nosso primeiro amor.

E quem não se lembra do pera, uva, ou maçã? É esse? É esse? É esse?

A crença do nosso berço de volta.

Pode ser também um feirante gritando: Mulher bonita não paga, mas também não leva.

É nele que podemos fazer o inverso, mudar as cores, trocar as mobílias de lugar, incrementar a receita, tirar o coração do modo soneca, desafinar embaixo do chuveiro, e até trazer a gratidão pra morar com a gente.

É nesse “amanhã” que podemos fazer diferente.

E amar diferente.

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