Estação

Peter Rossi

 

Chego à estação de trem esbaforido, trôpego. A primeira ideia é fixar os olhos no imenso relógio dependurado na cumeeira interna. O mesmo fundo branco e imensos ponteiros negros, vazados, buscando um ar de pompa e circunstância. O relógio, na verdade, pensa ser melhor que é. São 6h40. Tanto melhor, o trem parte as 7h15. Valeu o suor escorrendo pela testa, só não sei prá que …

Me deixo cair no banco de madeira branca, com ripas intermináveis, o encontro criando uma onda que minhas costas jamais alcançariam.

Ufa, é tempo de rever se todas as providências para a viagem foram tomadas. Primeiro, as passagens! Enfio a mão no bolso direito da calça, no esquerdo, no da camisa. Peregrino por todos os bolsos possíveis e de um sobressalto percebo que no fim desse pequeno tour, ela está no primeiro bolso no qual procurei. Gente, prá que tanto bolso? Claro, para que a vida cause a sensação de que sempre que precisamos de um pequeno objeto devemos imergir em cavernas escuras e como heróis saiamos felizes, salvando a princesa do dragão. Princesa que muitas das vezes é um simples documento, uma caneta, um telefone celular.

Vencida a primeira etapa! Os ponteiros, como que pregados ao fundo do relógio, pouco se mexeram, são 6h48.

É hora do check-list! Será que trouxe tudo que preciso para a viagem? Passo a conferir.

Com o verso da mão me acerco de que os óculos de ver a vida pousam imponente sobre meu nariz. Não trouxe, propositadamente, o de observar noite e estrelas, tampouco o de achar defeito em tudo. Tanto melhor. Vou com o de ver a vida simplesmente, achando que vi como de fato é. Estes óculos, na verdade, são os mais confortáveis, embora me sujeitem a distorções. Embora lá, muito ainda a conferir!

Os documentos estão todos aí. Ao seu lado os cartões de crédito. Tenho em mãos as máquinas plásticas que nos fazem sentir que tudo podemos.

Sigo vendo ou procurando ver se nada esqueci. Na mala preta, que segue à minha frente, estão roupas que usarei e a maioria que apenas seguirá em caso de necessidade, embora tenha a certeza que voltarão exatamente como saíram. Mas não se engane, são indispensáveis ao nosso conforto – elas estão aqui, felizmente, para cumprir esse papel: nos dar a sensação de que serão usadas, mesmo com a certeza de jamais isso ocorrerá. Tem roupa prá escalar montanha, para pesca submarina, roupa de casamento, até roupa de apadrinhar menino tem. As confortáveis, as nem tão confortáveis, mas que são as mais bonitas que já vimos. Tem roupa de emagrecer e para rejuvenescimento, essas as mais desejadas.

Nesse passo observo uma senhora com dois filhos traquinas correndo à frente. Seus músculos da face estão tensos, ela não consegue alcança-los e pensa que ao sabor dos gritos aflitos seus braços se prolongarão, permitindo tocar as crianças. Meus óculos de ver a vida, nesse momento, não me permitem ver mais que isso, mas já processei a informação da melhor maneira que quis. Tirei o instantâneo, pronto! Fato é que a senhora e as crianças se perderam ao alcance das minhas lentes.

Olho mais uma vez no relógio, são 7h07. Tempo de sobra.

Cerro os olhos, pernas esticadas sobre a mala, numa ação preventiva que me permite exercer vigilância, mesmo em outra estratosfera.

Aí a busca e os seus objetivos são mais densos: prá onde vou? Porque estou indo para lá? Voltarei que dia? Quem espero encontrar? O que busco?

Meu Deus, não consigo achar as respostas! Procuro mais uma vez em cada bolso e nada. Já sei, estão as respostas na carteira que insiste em tornar o ato de assentar uma medida extremamente desconfortável. Aliás, quem pensou que a carteira no bolso de trás de uma calça masculina é a melhor medida, na verdade não pensou. O fato é que sempre estamos nos sentando de menesgueio.

Mesmo com os olhos fechados espiei a mala, esquadrinhando cada canto. Nada encontrei.

Para meu conforto decidi, num átimo de segundo, que as respostas àquelas perguntas não são fundamentais, tanto que não as trouxe e, com certeza, viajarei da mesma forma – sem elas!

Descanso, quase um alívio. Os olhos estão pesados, afinal de contas foram minutos corridos até chegar aqui. Acordar, arrumar, escovar os dentes, vestir a roupa que embora estivesse previamente separada, foi modificada à última hora…

Mereço o descanso, afinal consegui vencer todas essas barreiras e cheguei à estação com vários minutos de sobra, como se diz aqui nas Gerais.

Aqueles minutos passam rápido, o apito do trem me desperta. Ele está soberbo à minha frente, com as portas abertas a gritar: – entrem, entrem! O trem das 7h15 vai partir!

Num pulo estou no corredor esmirrado, arrastando minha mala. Arranjo um lugar para coloca-la e sento à primeira janela livre que consigo encontrar, afinal planejei, desde o primeiro momento ver a paisagem. Só não me dei conta de que não sabia para onde estava indo.

O trem parte, e no monótono tilintar das moedas que vão presas aos trilhos me deixo cair no sono, sem a menor ideia do que estou fazendo ali, mas com um indisfarçável sorriso no rosto, deixando antever aos demais passageiros que cruzavam os corredores que ali está um sujeito momentaneamente feliz.

Deu tempo, antes de dormir, de rever mentalmente onde estavam os documentos, chaves, cartões. Tudo à postos! A mala já dormia, em cima de mim. A paisagem que tanto queria ver vai projetada na parte interna das minhas pálpebras fechadas.

Podia esquecer de todo resto, pois aquelas perguntas que antes me fiz, e para as quais não encontrei as respostas não deviam mesmo ser importantes, até porque cheguei em tempo à estação com minha mala devidamente preparada e peguei o trem, numa fria manhã de agosto, como se estivesse plenamente consciente de tudo o que deveria fazer…

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