Categories: Taís Civitarese

Arrumação

Em cinco sacos de lixo repletos de papel rasgado estava toda a minha vida adulta. 

Não sei por que guardava tantas coisas. Papai sempre me disse que um documento deve ser guardado por pelo menos cinco anos após seu recebimento. Levei esse ensinamento à risca e, muitas vezes, multipliquei os cinco anos por dois ou três. 

Prestes a realizar uma mudança de casa, tive que encarar os múltiplos armários, gavetas e caixas atulhadas de papéis. Era chegada a hora de fazer a limpa.

Não tenho exagerado apego a roupas e objetos. As duas categorias de itens frequentemente se reciclam em minha vida através de doações e reusos.

Com os papéis é diferente. Não se doa uma conta de luz antiga. E foi assim que acumulei um volume imensurável de registros celulósicos supostamente importantes, mas que nunca tiveram qualquer utilidade para mim senão a simbólica.

As contas, folhas, contratos, extratos, guias, cartas, declarações e portfólios davam conta de seis ruas diferentes em que morei nos últimos 15 anos. Havia atestados do nascimento dos meus filhos e lembranças de quem eu era antes de ter filhos. Comprovante de pagamento do INSS durante a licença-maternidade, contratos de aluguel antigos, carnês de escolinhas de natação e futebol, notas fiscais de compras, vacinas e consultas, informes do banco nunca abertos. Jornais do CRM, receitas velhas, recibos, apólices do seguro de saúde anterior. Cobranças de água, impressos da época em que caí na “malha fina” por ter esquecido de declarar um plantão médico que cumpri em um lugar avulso. Tantas coisas, tantas histórias. Tantos momentos vividos.

Rasguei tudo.

Piquei um a um daqueles papéis com a força e movimento dos meus próprios dedos. O processo levou horas. Enquanto fazia isso, deixava a vida para trás, morria e nascia novamente. Percebia como nada daquilo era importante e, ao mesmo tempo, havia sido essencial. 

Esvaziei a caixa para novas histórias. Filhos crescidos que já sabem nadar, outra casa.

Foi um alívio. Cinco sacos contiveram mais de 15 anos.

Não quero lembrar de nada. Tudo aquilo já está em mim, tudo aquilo já sou eu, faz parte do que segue incorporado em minhas entranhas. Prescindi das provas de uma vida burocraticamente descrita e restou apenas o que sempre me guiou por todos aqueles endereços.

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