Sopa de letrinhas

Peter Rossi

 

Vez ou outra, numa roda de amigos, nos deparamos com conversas antigas. É curioso como brilham nossos olhos para as novidades, mas acontecidos de tempos atrás nunca se vão. E nessa ambiguidade, vamos vivendo.

As Tv´s de não sei quantos “k’s” nos surpreendem a cada dia, com imagens cada vez mais nítidas e reais (ou irreais?). Comunicar hoje é tão fácil, basta apertar algumas teclas do celular e na tela vemos amigos queridos, ao vivo e em cores, viajando pela Tailândia ou Nepal.

Saudades são facilmente aplacáveis, essa é a verdade. Mas, paradoxalmente, outras saudades jamais são satisfeitas, consoladas, acalentadas. São saudades que não conseguimos remediar, daí estarmos sempre conversando sobre tais assuntos.

Pois bem, na roda de amigos demos a falar sobre nossas vidas de meninos e meninas, o que fazíamos, o que nos divertia. Nossos medos. O escuro, o terrível escuro, que apavorava a todos.

Eu mesmo vivi essa fase até que um belo dia meu pai pediu que buscasse os chinelos dele na grama do jardim. Eram quase oito da noite, me lembro bem, já estava de pijama de flanela. Na minha terra, no meio do ano, os dias e principalmente as noites, são muito frias.

Pois bem, fui buscar os chinelos do meu pai, cuidando antes de ver que as luzes ao redor da casa estavam acesas. Mas meu pai, tão logo percebeu que eu estava com os chinelos nas mãos, apagou todas as luzes e fiquei eu no meio do breu, com todos meus fantasmas à volta. Disparei para a escada da varanda, que sabia de cor onde começava e em menos de cinco segundos estava abrindo a porta que dava pra sala. Lá dentro meu pai estendeu os braços e me perguntou:

– Viu que não tem nenhuma diferença? De noite as coisas estão no mesmo lugar que estavam durante o dia. Você não deve ter medo do escuro.

Eu aquiesci com a cabeça, engolindo muitas lágrimas, com medo de que a experiência se repetisse. Pensei: se disser que ainda tenho medo, ele fará outras tentativas. Melhor meu pai pensar que fui curado, de uma hora para a outra.

As coisas aconteciam assim e, com o passar do tempo, lembrávamos de outros episódios da vida de cada um.

Em determinado momento, todavia, uma lembrança “lembrada” por uma amiga trouxe com ela a introspecção. Ela se referia a uma sopa de macarrão muito popular, que nossas mães insistiam em nos oferecer, principalmente nas noites de inverno.

Nada demais, um caldo substancioso, com pequenos pedaços de carne e macarrão, pequenos pedações de massa sob a forma de letras do alfabeto. Era a sonhada “sopa de letrinhas”.

Comíamos tudo pois, além de saborosa, a tal sopa era para nós um brinquedo.

– Agora engoli uma asa, duas letras “A” e uma letra “S”!

– Eu consegui comer uma palavra em inglês – LOVE!

E assim seguíamos até aparecer o fundo do prato, quase que sempre branco. Como uma coisa tão simples nos traz sentimentos úmidos de tanta felicidade! Sopa de macarrão, tão trivial, mas inesquecível.

Uma onda de melancolia me alcançou e fiquei desesperado, numa fração de segundos, ao pensar que as letrinhas não mais existem.

– Pessoal, e alguém sabe me dizer onde posso comprar essa massa de letrinhas?

– Acho que não existe mais, disse um.

– Que bobagem, ainda existe e é muito fácil de encontrar, refutou a amiga que tinha trazido a lembrança à mesa.

Meu coração se acalmou e segui a noite, lembrando de tantos outros momentos.

No dia seguinte, pesquisei primeiro pela internet e no final do dia fui até um supermercado e comprei a iguaria.

Estaria sozinho naquela noite e nada melhor que viver a experiência. Cuidei de fazer um caldo bem saboroso, coloquei a carne e pequenos pedaços de cenoura e na mesma panela, despejei um pacote de macarrão de letrinhas. Depois de pronta a comida, servi em um prato fundo e com uma taça de vinho tinto ao lado, sorvi e me empanturrei com a sopa. Comi quase que o conteúdo de metade da panela.

Aquela fumaça que surgia na colher, enquanto eu procurava formar as palavras trazia tantas memórias… Vez o outra, num prato que deixei estrategicamente ao lado, colocava algumas letras e ficava lendo, lendo …

Foi uma experiência formidável que dividirei com meus amigos no próximo encontro. Recomendo, não deixem de comer a sopa de letrinhas. A gente cresce, é verdade, mas existem prazeres que nos acompanham por toda a vida.

E não há desculpa alguma que nos impeça de saborear a iguaria. Comida de criança? Nada disso? Comida de gente feliz!

Ainda bem que algumas coisas permanecem, ainda que as televisões modernas a cada segundo sejam substituídas.

Um viva às nossas memórias!

2 comentários sobre “Sopa de letrinhas

  1. Prezado Peter!!
    Que deliciosa leitura!! Saudades deste prato saboroso de letrinhas!!
    Lembro que quando tive meus filhos ,proporcionem para eles essa aventura de saborear e formar palavrinhas dentro da barriguinha!! Kkk Que lembrança gostosa!!!!Acabei encontrando também, letrinhas coloridas e números também!!
    Hoje ,faço para a família neste inverno, o famoso mingau de fubá com queijo,mingau de cremogema e outras guloseimas da infância.
    Obrigada por nos proporcionar essas lembranças que nos remetem à infância.
    Tempo bom!!

    !

  2. Prezado Peter!!
    Que delícia saborear esse texto!!
    Obrigada por nos compartilhar desta agradável leitura!!
    Essa sopinha foi tão marcante,que também preparei para os meus queridos filhos.
    Assim,cada letrinhas saboreadas,formavam palavrinhas mágicas naquelas barriguinhas famintas kkkkk
    Que delícia relembrar!Hoje mesmo, vou procurar no mercado para preparar como vc fêz, acompanhado com um vinho.
    Vou viajar no tempo da minha infância querida!! Viva..viva as boas memórias …

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