Não me chame de amor…

Rosangela Maluf

Como sempre vem acontecendo nos últimos meses, ela acorda de mau humor. 

Olha o relógio em sua mesinha de cabeceira e vê que ainda é muito cedo: 7h45. Resolve ficar mais um tempo na cama, mas sente-se mal. 

Quer respirar profundamente. Não consegue sem enorme esforço. Além disso, tem sede, muita sede. Talvez tenha sido o vinho que lhe acompanhara na noite anterior quando fez um bacalhau desfiado com grão de bico (prato que ele adorava). 

Colocou uma toalha bordada, escolheu com cuidado o guardanapo que combinaria com aqueles variados tons de verde. Não era nenhuma data especial, apenas mais um final de semana sem ele. Abriu um vinho branco, bem geladinho e preparou as travessas que iriam para a mesa.

Sentou-se como uma baronesa, mas comeu sozinha. E chorou…

Terminada a garrafa de vinho, tomou um banho bem frio para se livrar do mal estar. Saiu e foi direto pra cama. Antes, tomou daquelas gotinhas milagrosas que lhe fariam dormir a noite inteira. Chorou mais um pouco, mas sem nenhum drama. Um sofrimento menor.

De manhã acordara silenciosa. Foi até a cozinha pegar água com gás para lhe aliviar o estômago enjoado. Preparou um café bem forte.  Olhou pela janela e só então viu o quanto o dia estava feio, cinza, nublado. Talvez para combinar com o seu coração triste e desiludido por demais. 

Naquela semana fizera quatro meses que Allan havia se mudado novamente para a casa da mãe. Era a terceira vez que se separavam em pouco mais de quatro anos juntos Ela ainda amava o ex-marido, mas vinha sinalizando para os familiares o quanto ele apresentava, cada vez mais, sintomas fortíssimos de um intenso e grave descompasso mental.

Voltou pro café que já estava frio. Pensou em se trocar e sair. Sim, lhe faria bem.

Uma boa padaria ficava a duas quadras de sua casa. Ar condicionado. Funcionários que já a conheciam, sentia-se em casa. Pãozinho na chapa, bolo de laranja. Um delicioso café com leite e, se desse sorte, ainda haveria pão de queijo quentinho. Sim, iria passar na Confeitaria Suisse, para tomar um café reforçado enquanto olhava seu Face, seu What’s , seu Insta, seu G-mail, seu Telegram & etc. 

Tocou o celular. 

Era a sogra com quem sempre tivera uma relação muito boa, amigável. 

As duas muito atenciosas uma com a outra.  Dona Edith precisava falar com ela com certa urgência. Poderia adiantar alguma coisa? Ela quis saber, Não! Seria muito importante que ela fosse até a sua casa. Quis então saber se Allan estava bem.  A sogra disse que sim, mas havia certa preocupação naquela voz.

Voltou pra casa. 

Em quinze minutos já saía novamente. 

Deixou o carro e pegou um Uber.  

O trânsito estava tranqüilo. O dia continuava cinzento e feio. Um mormaço insuportável lhe fazia transpirar em bicas. O Uber estava sem ar condicionado. Calor indescritível, que droga !!!

Ao chegar à casa da sogra notou que a janela do andar de cima encontrava-se ainda fechada. Em baixo, mesinhas ao redor da piscina. Seu Rafa aspirando a sujeira diária.. Um leve cumprimento e entrou. 

.Ela continou a andar até chegar à sala de TV onde estava a sogra. 

Pobre dona Edith. A sogra perdera o brilho nos olhos. Parecia não saber o que dizer. Tinha os olhos e o nariz, vermelhos. O semblante muito triste. Conversaram por mais de uma hora. Choraram as duas, muito. Seria mesmo inadiável a internação de Allan.

Ela não sentiu pena. Seus nobres sentimentos em relação a todo e qualquer ser humano, não se manifestaram. Lamentou profundamente o ser insensível que se tornara depois de tanto tempo tentando ser forte. Sentia-se envergonhada, mas não comentava com ninguém, nem mesmo com a sua melhor amiga.

Sentiu raiva pelo número de vezes que tentou levá-lo a um bom psiquiatra. Convencê-lo de que tudo que ele sentia e fazia não era normal. Ele poderia ter uma vida saudável desde que se tratasse. 

Tentou, com palavras doces, palavras medianas, palavras duras e palavras agressivas. De nada adiantou. 

Ele se dizia ótimo, saudável e uma vez ou outra sim, surgia uma ansiedade exagerada, mas que passava após algumas doses de uísque. Ele começou a desenvolver manias, preocupação exagerada com portas e janelas. Se estavam fechadas, quem fechou. O gás estava desligado?  Quem desligou? 

E ela profundamente cansada. 

Não conseguia resolver e nem ajudar. Foi então que resolveu se separar. Dar um tempo. Longe um do outro, quem sabe ele mudaria de ideia? A princípio ele aceitou. Prometeu que iria se tratar e voltaria o mais rápido possível pra casa. Não queria viver longe dela

Um mês se passou. 

Ele, de férias do trabalho, na casa da mãe. Ela ia visitá-lo nos finais de semana e, segundo a sogra, ele aparentava um mal estar incomum que só aumentava.. 

Ela ficou então, duas semanas sem aparecer… Muito trabalho, era a desculpa que dava, mas não convencia ninguém.

Quando voltou encontrou-o encolhido num canto, ainda de pijama, sem querer falar com ela. A sogra achando que era uma leve depressão e muito comodismo. Allan andava muito preguiçoso, dizia a mãe..

Ela sabia que o marido não estava bem de saúde. A piora era visível. Ela não merecia aquele sofrimento todo. Sim, era egoísta, sempre fora e agora precisava urgentemente resolver aquela situação. Não aceitava nenhuma dor de outras pessoas, Mesmo as muito próximas. Sim, ela era assim.

Allan continuava profundamente perturbado mentalmente, com regressões sistemáticas à adolescência, Parecia um garoto, sem noção do que fazia, do que dizia. Voltou a fumar e tomava muito mais whisky do que deveria. Uns papos ruins, desagradáveis com ela, com a mãe com o irmão mais velho. 

Todos passaram então a sugerir internação imediata.

As coisas não são assim, ela dizia. Não é só internar. Existem vários tipos de tratamento. Hoje, as equipes são multidisciplinares. Há um conjunto de profissionais capacitados a acolher e tratar o paciente. E quem decide a internação é o psiquiatra. 

Há a internação voluntária, quando o próprio paciente chega a um determinado ponto de sofrimento e desconforte, que ele mesmo deseja se internar. Se o médico achar que sim e Allan continuar resistente se pode proceder à internação involuntária. Em casos extremos, à internação compulsória.

– Estou falando há meses que não podemos esperar mais tempo. Ele tem piorado muito. Todo mundo vê, o que estamos esperando?

Muitos colegas do Clube da Moto foram visitá-lo. Todos perguntavam quando ele iria ao médico, quando tomaria algo pra deixá-lo mais animado, mais alegre. Não era possível continuar naquele estado. Descuidado, aspecto imundo, não queria mais tomar banho, nem lavar os cabelos. A situação parecia insustentável. Alguma coisa precisaria ser feita. Urgentemente.

Um dia lembrou-se de uma amiga muito querida com quem já não falava há algum tempo. Durante anos saiam os quatro: Elisa com o marido, e ela com o Allan. Elisa era psiquiatra. Isto mesmo. Como não havia pensado nela antes? Olha em sua agenda e não encontrou. Procuroui no Instagram e lá estavam nome, endereço da clínica, horários, contatos, etc.

Ela marcou um horário. Se abraçaram com saudades dos tempos passados. Um papo de quase uma hora. No final, uma decisão: se ele não fosse até ela, a profissional iria até ele. Aproveitaria para rever a Dona Edith, e o Lúcio, irmão do Allan. Queria muito conversar com todos eles, mas antes ouviria Allan que se mostrou receptivo á chegada dela.

Nenhuma melhora foi percebida. A situação aliviara um pouco a vida da Dona Edith e o Lúcio confessou que se sentia um pouco mais leve, após a internação.. 

Não havia previsão de alta, nem se notava uma melhora significativa.

O olhar perdido continuava. 

O distanciamento permanecia.  

Frio. Seco como nunca fora antes.

 Ela não podia mais se entregar. 

Mais do que difícil, aquilo tudo lhe era impossível.

Resolveu que não queria vê-lo daquele jeito; ainda que a internação já chegasse ao fim, não queria vê-lo na casa da mãe e muito menos na casa deles – ela não podia deixar o trabalho e, sinceramente? Não queria cuidar dele.

Olhava-se no espelho e questionava a frieza de seu comportamento.

Onde fora parar o amor que sentira por Allan. O que a fez mudar tanto em tão pouco tempo assim? Sempre fora uma pessoa difícil, dizia a mãe. Um gênio do cão, diziam os irmãos. Egoísta e má, falava a madrinha por quem ela não desenvolvera nenhum carinho ou atenção.

Pensou.

Pensou e resolveu ir embora. Planejou uma semana em SP. Ligou pra amiga, confidenciou o que sentia. Resolveu a transferência do trabalho. Deixou o apartamento para quem quisesse – deixou tudo dentro, Só queria distância e sossego.

Não pensou muito e agiu rápido.

Não deixou cartas, não enviou nada escrito.

Encontrou numa revista dois ursinhos com as carinhas bem bravas..Enquanto o ursinho olhava para a ursinha com a cara de tristeza, ela apenas apertava os olhinhos e dizia:

-Não me chame de amor!

Rasgou a gravura e achou melhor nada dizer, nada!

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2 comentários sobre “Não me chame de amor…

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