(Texto original publicado em 19 de Agosto de 2020)
Há algo de que não se cura, e os anos vão passando, mas não nos curamos nunca.
Quem sabe teremos de novo uma luminária sobre a mesa e um vaso de flores e
os retratos dos nossos queridos, mas não acreditamos mais em nenhuma dessas coisas,
porque antes tivemos de abandoná-nas de repente ou as procuramos em vão entre os escombros.
(Natalia Ginzburg, Pequenas Virtudes, p. 63)
A sua imagem aparece inequívoca nos meus sonhos da madrugada de domingo. Acordo feliz, me sentindo protegida. Tia Marina, que rezava o terço e tinha um pálido poster do papa João Paulo II na parede, “apareceu” para mim. Tia Marina foi um anjo para mim.
Ela era irmã do meu avô paterno, mas só soube disso quando cresci e ela já tinha partido deste mundo. Chamava ela de “tia” por puro afeto, sem entender a lógica das relações de parentesco.
Ela não teve filhos, mas sabia de cor a receita da maternidade. Amor genuíno e doação. Ela cuidou de mim durante minha infância e eternizou muitas das boas lembranças que carrego comigo.
Na minha visão infantil, era difícil saber quantos anos ela tinha, se era velha ou jovem como eu. Na verdade, nos nossos encontros sem hierarquia, acreditava que éramos duas crianças, ela e eu.
Na minha memória, lembro da sua voz suave, meio rouca, sua pele e olhos claros e opacos, seus os óculos de grau de armação grande e transparente. Seu olhar amoroso e atento. Sempre vestida com seus longos e discretos vestidos de botão, seu cheiro de pó de arroz. Quase consigo senti-lo.
Muito simples e calma, acho que ela tinha um “quê” de atrevida, divertida. Ela me cantou “se essa rua fosse minha”, “fonte do tororó” e “boi da cara preta”. Ela também me ensinou que estalar os dedos das mãos faz engrossar as juntas. E eu aprendi rápido, vendo os seus dedos mínimos tortos pela artrose, acreditando que eles tinham ficado daquele jeito por terem passado uma vida inteira sendo estalados.
Ela morava no centro da cidade, no edifício Itatiaia, em plena praça Rui Barbosa. A memória é muito vívida. As visitas à casa dela nos finais de semana tinham gosto de “Guaraná Antártica” e chocolate “Diamante Negro”. Naquela época em que o “Diamante Negro” era feito de chocolate. De vez em quando cheiravam a suspiro caseiro.
Quando ia à minha casa, Tia Marina me acompanhava até a papelaria para comprar papéis de carta, adesivos, canetinhas ou qualquer outra bugiganga que justificasse o nosso passeio à pé pela rua. Quando cresci um pouco, era ela a tia quem me dava dinheiro escondido.
Não sei que dia ela nasceu, nem que dia morreu. Não soube do funeral. Penso em pesquisar essas datas, mas já não importam. O tempo é somente uma abstração. E o amor é memória. E a memória não perece.
Ela cuidou de mim e ainda cuida. Eterna.
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