CONVERSAS EM ESTRADAS

Raniere Sabará

Viagem é mistério. As paisagens são o que mais me encanta. O carro em movimento demonstra a arqueologia de músculos. Minúsculos. Montanhas. São tantas espécies e diversidades naturais. Nessas paisagens os pássaros cantam afinados e as flores são revestidas de histórias por traz das casinhas de pau sob a serra.

Me pairo a pensar nos nomes detrás dos lares ao longo da estrada. Dona Sinhá. Por algumas vezes a vi sentada com sua cadeira-balanço na calçada. Seu dia era avesso à cidade.

Quando ainda criança, sua sabia avó lhe passara os ensinamentos de colheita da pequena área de plantio do terreiro de Pedra Rio. Dizia-lhe que sua subsistência e harmonia se encontravam ali. Os pés de pirangueira, açafrão, manjericão e ervas daninhas deveriam ser cuidados como criança a ninar. A grande sábia dizia que ali estava o sentido do tempo. Havia também as raízes de mandioca, tomate, limão e mamão que deveriam ser cuidados como faróis que levitam nas lagrimas de chuva em lua cheia.

Pela palavra, Dona Sinhá se construiu enquanto ser como fonte rochosa em ilha. Às 5:00 da manhã, o som do vento e o canto do galo, lhe demonstra que um novo dia está para nascer feliz. O altar de preto velho na cabeceira do quarto, faz de seu corpo fechado. Sempre dizia que quem a protegia não dormia. O cheiro do pasto, para ela, era um perfume que adentrava terreiro. O cheiro do café, colhido no dia anterior, era aconchego de simplicidade pela vida que tivesse.

Hora de trabalhar. Digo, terapia. Sinhá não via a agricultura familiar como trabalho, mas sim, um modo de vida que jamais se imaginaria sem. Gostava de descalçar os pés, pois, acreditava que a conexão com a terra a deixava pertencente de si. Essa lasca, ruina meio gasta que consideramos trabalho na cidade, para Sinhá era bem-estar social partilhada como profunda ancoragem ao estar com alguém.

Por desencontro, a minha relação com o tempo era diferente e precisava me despedir de Dona Sinhá. Ainda havia de trabalhar, mas, não pude deixar de sentir meu peito palpitar com o nosso encontro que me foi alvo, como benção de Caeme. Pela partida do sorriso amarelado, pelos olhos pretos de jabuticabeira, entendi que, talvez, a nossa relação de pertencimento no mundo se corrompeu muito antes de pensarmos em resistir, embora sei que a mudança do sagrado feminino será a arma da simplicidade e esperança do bem-viver.

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