Rosangela Maluf
Naquela noite a chuva avisou sim, que cairia com força.
Jornais falavam do perigo, dos ventos fortes em preocupantes velocidades. As mensagens nas redes sociais prenunciavam granizo e muita, muita água.
A tecnologia nos permitindo saber a hora aproximada daquela tormenta anunciada; informava o volume previsto e assim, cada um que se preparasse à sua maneira. Diante de tanta informação e egoisticamente, sozinha em casa, simplesmente fechei bem as janelas. Só isto.
A segunda parte foi destinada a uma grande recepção para aquela noite de chuva. Adoro chuva e adoro rituais. Aproveitei que o meu guardião interno pedia por incenso de sândalo ou patchouli,. Um potinho de vidro com sal grosso e duas ou três velas amarelas; cada uma em seu suporte indiano: colorido e cheio de pequenos cacos de espelho, num efeito maravilhoso. A luz cintilante se move percorrendo as quatro paredes do quarto. Não seria exatamente o preparo para uma meditação, mas uma ambientação, a mais adequada possível, para alguns momentos de profunda reflexão, já há muito desejada.
Algumas gotas começaram a cair devagar, como quem não quer nada. Trovões e alguns relâmpagos iluminam o quarto, num belo dueto com as velas, os espelhos. A chuva. A natureza mostrando sua força e eu, tentando buscar a minha.
O poder e a força da natureza me atraem. É nesta força que me espelho, buscando em sua profundidade tudo que poderia fazer de mim um ser melhor, mais humano, mais digno de todas as coisas já conquistadas e tantas outras recebidas e compartilhadas.
Não é preciso se colocar de joelhos, pedindo o que talvez não lhe pertença. Confie num poder maior, tão grande quanto a natureza e que nos guiará por todos os caminhos que iremos percorrer – sejam eles quais forem.
Mergulho em intensa calmaria. Nem chuva nem vento. Alguns trovões e me encontro no mar. Extensas dunas de areia. Em uma delas eu me deito. Olho o céu escuro. Milhares de estrelas que cintilam e um imenso reconhecimento brota em meu peito.
Reconheço todos os méritos que me foram dados nesta vida.
Todos os presentes que me acompanharam por todo o tempo em que aqui estou. Aqui na terra, que fique bem claro. E sou imensamente grata por tudo que recebi e ainda recebo, a cada dia.
Sempre aceitei com certa tranqüilidade tudo que me fora destinado. Muito cedo aprendi lidar com o desagradável, o negativo.
Quando jovem pensava em se tratar de indiferença, quando o simples “tudo está bem” resumia os pensamentos! Com o passar dos anos busquei aperfeiçoar o desprendimento com que eu enfrentava os momentos difíceis, as perdas, os embates afetivos e por aí vai. Aos poucos, fui conseguindo. Com esforço sim, consciente da busca, sim e chegando devagar aonde eu queria.
Fizeram-me acreditar em umas não-verdades, mas desconfiada nunca me deixei enganar. Do que poderia eu reclamar da vida que tive? Certeza eu tenho de que fui íntegra e correta em outras vidas; talvez por isso receba tanto do universo, de Deus, do meu anjo da guarda, dos guias, dos guardiões.
Não é presunção, apenas constato observando a minha vida até aqui.
Agora saio da praia e volto pro meu quarto.
Cai uma chuva forte e o respingar da água nas janelas causa dentro de mim, um som diferenciado. Este som me leva a associar a água às várias maravilhas que sinto.Volto pra natureza, a lua cheia, o nascer do sol, as cores do céu, das árvores, as flores, as plumagens dos pássaros, seu canto. O azul do mar, as ondas, as praias, os peixes coloridos, os mistérios dos oceanos.
Como pode uma tempestade nos levar ao infinito.
Saber que não somos nada no universo.
Um pedacinho de nada, uma coisinha à toa, ínfimos diante da grandeza do nosso planeta.
Como cuidar desta casa que é nossa, mas que insistimos em não preservar? O cuidado com as florestas, as matas, os animais, as aves, os mares, tudo em que a vida se manifeste.
A tempestade me interioriza e a gratidão, cada vez mais forte, brota do meu coração.
Invade meus pensamentos e novamente sou grata por tudo que recebi.
Por tudo que conquistei. Por tudo do que consegui me desapegar, com ou sem sofrimento ou dor.
Totalmente desprendida, desapegando-me de maneira tão leve como se fosse muita antiga a minha alma e que eu precisaria de muito pouco pra me tornar plena.
Continuo a agradecer pela qualidade de vida de que disponho hoje.
Muito trabalho quando necessário foi. Muito, muito, muito trabalho. Muita dedicação, muita entrega, alto desempenho e força quando tudo isto se fazia necessário. Todo mundo passa por fase semelhante, é o nosso período de sobrevivência. Casa, família, filhos e até que tudo passe, damos o nosso melhor, o tempo todo, sem descanso. Faz parte da luta!
Lembro me então das bênçãos familiares.
Um presente em forma de pai & mãe. Outro presente em forma de irmãos-parentes-família. Perfeitos, não, mas sem brigas, sem confusões. Amigos de infância que mantenho até hoje. Colegas de escolas.
Das Faculdades. Trabalhos desafiadores, bem remunerados, vitórias parciais em preparação para o grand finale, que um dia virá.
Filhos, outra bênção. Perfeitos, saudáveis, corretos, honestos, independentes, cada um cuidando de sua própria vida. Ousados, corajosos, criativos cada um buscando o seu melhor pelo mundo afora. Cursos, viagens, novas experiências, vários idiomas. Realizados, equilibrados e felizes. Mentes, equilíbrio, corações cheio de amor!
Volto ao barulho da chuva.
Sinto-me novamente mergulhar em águas profundas.
Constato que, ao longo do tempo, fui aprendendo a julgar menos, a criticar menos e a me irritar cada vez menos. Faz bem pro corpo e pra mente. A cada dia me vejo desprendida, sem apego a nada, bastando-me muito pouco pra ser feliz, muito feliz. Olho ao meu redor e constato, com um sorrisão no rosto, que nada me falta. Tenho tudo do que necessito, tudo de que preciso neste momento, no agora, no meu instante presente.
Agradeço ainda pelos amores & paixões intensamente e longamente vividos. Agradeço pelas relações saudáveis, carinhosas, afetuosas, mas briguentas também; a perfeição não existe mesmo! Respirar fundo e seguir em frente Aceitando o outro, com suas certezas, e do lado de cá, nós e nossa resistência. Ao longo da vida vivemos sentimentos bons, outros nem tantos. E o silêncio me leva a este encontro. A chuva me leva até esta magia.
Nos descobrimos cheios de qualidades, mas somos um poço de defeitos também! Não vamos nos irritar por pouco. Vamos aprender a observar nossa qualidade de vida, monitorando atentamente e constantemente, estas pequenas coisas que nos tiram do sério e que tanto mal nos causam.
Cuidar muito bem da nossa vida não fazendo ao outro o que não queremos pra nós. Praticar a empatia dá muito certo, experiência própria. E, principalmente, não permitir que ninguém nem nada, nos tire do nosso (duramente conquistado) ponto de equilíbrio.
O barulho da chuva se mantém no mesmo volume.
Cai muita água. E eu aqui, imersa em explicações que desejo dar a mim mesma. O pensamento se mantém claro. Reconheço que a vida é mais que um ensaio. É a presença no aqui e agora para que tenhamos consciência do que vivemos. Também para que nos mantenhamos em nosso próprio ritmo, nossa prova, nossa resistência e nossa recompensa, é claro!
Somos totalmente livres para fazer da nossa vida o que quisermos.Utilizar o livre arbítrio e escolher a cada dia, a cada situação e a cada momento o que fazer da nossa vida, optando entre o que nos faz bem e o que nos fere, nos machuca, nos magoe..
O silêncio me faz muito bem. Leva-me a lugares aonde raramente consigo ir. Penso nos afetos, nas alegrias, nos momentos de realização, nos amores compartilhados, na imensa premiação a que fomos apresentados. Gratidão, muita gratidão, por tudo, por todos que atuam (e atuaram) no filme da minha vida.
Sou feliz, muito feliz, imensamente feliz!
Belo texto! Como uma chuva lhe despertou tantas emoções vividas, a água caindo e a sua vida se revelando!
Que chuva gostosa! Amo a sua narrativa. A sua história de vida é muito linda. Você passou por perrengues e deu a volta por cima. Fala de seus pais, filhos e natureza com muito amor. Convivi muito com sua mãe. ♥️ Ela foi um porto seguro pra mim, quando estava para me casar. Lembro com saudades dos seus conselhos. O seu ritual com velas amarelas, sal grosso e sândalo, para esperar a chuva, merece respeito. Não entendo nada destes rituais exotéricos, mas acho lindo o seu altar. Esta chuva deixa saudades. Parabéns pela linda narrativa.